Cultura

NOVELA DE DOMINGO: UM TÁXI PARA ALBANY, POR MARCO GAVAZZA

Segue no próximo domingo
| 10/05/2009 às 10:02
O mistério da morte do livreiro George segue no próximo domingo. Não percam.
Foto: Arquivo

DEZEMBRO, 1949, WEST END, LONDRES.


Inexpressiva como um quarto de hotel, a  chuva caia fina sobre o novo ano, a velha esperança e as sempre iguais ruas desertas de Londres, como se não lhes importassem a vida, seus morangos mofados e seus compromissos. Após exatos 10 anos, o dia 31 de dezembro de 1949 conduzia Florence Dayse Vatumbí Nash mais uma vez até diante daquela pesada porta de mogno, sobre a qual brilhava em bronze constantemente polido, o número 308 do Albany Court Yard, um antigo e discretíssimo prédio de apartamentos para solteiros numa pequena rua saindo de Piccadilly.

 

Ela contara mais uma vez mentalmente os degraus que levavam até o terceiro piso. Continuavam sendo 72, como desde a primeira vez que estivera ali. Há algum tempo percebia que demorava um pouco mais para subir e que sua respiração estava acelerada ao pisar o último degrau. Talvez fossem os efeitos do maço e meio de cigarros Half & Half, feitos com tabaco de cachimbo, que consumia diariamente. Talvez fosse apenas o efeito das noites mal dormidas, das incontáveis doses de brandy e das milhares de vezes em que se deitara com alguém nos mais diferentes endereços de Londres. Talvez, e mais provavelmente, tudo isso junto. Mas lembrava que naquela longínqua tarde de janeiro de 1940, ela subira os 72 degraus rapidamente, chegara ao topo da escada cheia de disposição e seus olhos negros, por alguma razão que só ela conhecia, brilhavam.

 

Florence Dayse era surpreendentemente morena, para uma inglesa. A política exterior britânica e o sobrenome Vatumbí poderiam esclarecer este detalhe, mas não eram suficientes para impedir a curiosidade de quem a via pela primeira vez. Pele muito lisa, cabelos ondulados negros, olhos grandes e também negros, corpo bem feito, pernas e coxas grossas, seios pequenos e rijos, Florence era uma mulher sedutora. Claro que isso fora alguns anos antes. Ainda conservava o charme e a sedução, mas a pele perdia o viço, os olhos perdiam o brilho e o corpo perdia a rigidez das curvas. Continuava encantando os homens que a procuravam, sempre envolta por uma suave maquilagem, pela luz normalmente amiga da noite e pela eterna fumaça do Half & Half. Mas em sua casa diante do espelho, completamente nua, Florence sabia que o tempo passava. Podia vê-lo passando por seu corpo, mesmo que os homens não percebessem isso através das inúmeras doses de brandy que todos sempre acabavam por tomar enquanto a esperavam. Florence também não era muito britânica em relação ao tempo. Tinha absoluto desprezo pela pontualidade e costumava atrasar-se no mínimo 2 horas para qualquer compromisso. 

 

Herdara de sua mãe o hábito de orientar-se pelo corpo, pelo instinto e pela luz, nunca pelo relógio. Todos entretanto a esperavam, ansiosos pelas horas que passaria com eles e pelo prazer que sabia lhes dar. Precisava começar a procurar não se atrasar tanto agora, pensava algumas vezes diante do espelho. Mas dez anos depois e ofegante, naquele inesperado momento, diante da mesma porta de mogno, seus pensamentos eram outros.

  

Tocara a campainha duas vezes seguidas, como sempre fizera por todos aqueles anos e podia mentalizar do outro lado da porta, George Wesley levantando-se de sua poltrona de couro onde sentava-se para examinar incontáveis volumes velhos de romances e novelas, selecionando os que julgava mais conservados para expor na sua loja em Cheshire Street. Ele caminhava sem pressa em direção à porta após pedir em voz quase inaudível que aguardassem um instante. Em seguida fecharia a porta do banheiro eternamente aberta e iria até a porta da frente. Provavelmente estaria vestindo apenas as calças do pijama e abriria uma fresta da porta para verificar quem estava ali antes de abrir. 

 

George tinha pouco mais de 50 anos, era alguns quilos acima do que seria seu peso aceitável e vivia entre a loja próxima ao Brick Lane, onde vendia livros e móveis usados e o apartamento no Albany. Raramente ia ao teatro ou ao cinema, nunca às corridas. Freqüentava com alguma regularidade alguns poucos restaurantes que escolhera com critério, buscando uma complexa mistura de boa comida, baixos preços e pouca gente. Em toda Londres deveriam haver uma meia dúzia de lugares com estas características e ainda assim passageiras, pois com o tempo invariavelmente a freqüência e os preços aumentavam enquanto a qualidade caia. Fora disso, George raramente saia e quase ninguém recebia em sua apartamento. Florence fora a única visita constante por todos estes anos, indo até lá quase todas as semanas. Por diversas vezes saiam juntos para algum restaurante e logo voltavam para o Albany, quando então George se entregava totalmente aos carinhos de Florence até adormecer esgotado.

 

Passados alguns instantes, ouviu-se a chave girando na fechadura e a porta de mogno abriu alguns centímetros, deixando ver o rosto de George, que por trás dos pequenos óculos de leitura esboçou uma expressão de espanto. Antes que ele abrisse completamente a porta e os lábios, Florence tirou da bolsa um pequeno revolver prateado e atirou uma vez. O rosto de George desta vez assumiu uma estranha expressão de alívio e dor, tingindo-se de vermelho enquanto deslizava porta abaixo a empurrando para frente, até que ela se fechou novamente.

 

Florence virou-se e desceu os 72 degraus que a levavam de volta a discreta Sackville Street. Estava ainda mais ofegante quando saiu do Albany, mas quase ninguém a viu ou deu importância a isso.

 

CAP. 1

JANEIRO, 1940, WEST END, LONDRES

 

Um taxi para o Albany, por favor. Alguns motoristas de taxi que pegavam Florence na esquina da Stoney St., onde ela morava, num anônimo e mau cuidado prédio de apartamentos próximo ao Borough Market;  já a conheciam e não se espantavam mais com a sua maneira pouco usual de indicar para onde ia, referindo-se ao taxi como se fosse ele o próprio percurso.  (...)