Cultura

MANDA QUEM SABE MANDAR, OBEDECE QUEM É RESPEITADO, POR MARCO GAVAZZA

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| 27/04/2009 às 12:17
Idéias são democraticamente discutidas nas agências, entre vários atores
Foto: Ilustração

Certa vez um amigo me deu o seguinte conselho: Para se dar bem numa empresa, localize no organograma, onde você está. Passe uma régua neste ponto e considere que daí pra cima todo mundo está certo e daí pra baixo, todo mundo está errado.


Achei o "ensinamento" criativo, bem humorado e talvez até refletindo certa realidade. Mas nunca precisei usar a tática, porque muito diferente dos organogramas da maioria das grandes empresas,  a hierarquia nas agências de propaganda é uma coisa bastante flexível e o fluxograma está mais para o princípio dos vasos comunicantes que  para a rigidez dos quartéis. Idéias são democraticamente discutidas entre departamentos, opiniões diversas são escutadas e é possível discordar de alguém que está acima da linha, embora às vezes isso possa trazer conseqüências lá adiante, dependendo da matriz emocional de quem está acima.


Entretanto existe em todas as agências  um cargo extremamente complicado, controverso e curiosamente ocupado quase sempre por pessoas absolutamente incomuns.  E às vezes o incomum beira a insensatez ou caminham juntos. Por definição a Diretoria de Criação é o controle de qualidade do produto final. Alguém capaz de ter absoluta certeza de que uma peça publicitária está atendendo às necessidades mercadológicas do cliente e ao mesmo tempo, indo ao encontro do consumidor com poder de atrair sua atenção e convence-lo a respeito de alguma coisa.  Se além disso ganhar um prêmio valorizando a agência, melhor ainda.


O "controle de qualidade" porém não é apenas estratégico, mas também técnico.  A escolha da tipologia, o tamanho e a qualidade de um texto,  a fotografia ideal, a trilha adequada ao comercial, a voz de um locutor, ou seja, infinitos fatores técnicos entram na fila para serem liberados pelo Diretor de Criação depois que os conceitos criativos e estratégicos estiverem corretamente definidos. Não é simples. A responsabilidade é imensa, as pessoas criativas com quem ele lida nem sempre são de fácil compreensão e tudo isso junto pode sem dúvida, levar à uma certa desordem mental.


Ao longo da minha vida profissional convivi com dezenas deles, conhecendo personalidades das mais extravagantes. José Fontoura, na Ogilvy de São Paulo, ao ser apresentado a uma idéia por uma dupla de criação, perguntava depois de intermináveis minutos de observação silenciosa da peça: Isso é o melhor que vocês podem fazer? Responder o que? Responder sim significava dizer "este é o nosso limite criativo". Responder não  era dizer "não nos esforçamos o bastante". A única saída era o silêncio e a própria saída: a porta da sala e a volta ao ponto zero para criar algo mais impactante, mais próximo da excelência.


Agnello Pacheco, quando Diretor de Criação da Norton Publicis, também em São Paulo, passava semanas sem ser visto por qualquer pessoa da criação. Enquanto as duplas trabalhavam no 10º andar, ele mantinha sua sala no 8º.  Um dia qualquer Agnello surgia no 10º com um anúncio, uma prova de outdoor ou alguma outra peça. Reunia todas as duplas na vasta recepção e perguntava: Quem fez isso?  A resposta não resultava em nenhuma conseqüência direta para os autores do trabalho. Simplesmente a partir daí todos escutavam uma longa explicação de porque aquela peça era extremamente eficiente ou porque era um desastre total. Findo o discurso Agnello sorria misteriosamente e voltava para o 8º andar, deixando uma das duplas arrasada ou exultante.  Era sua maneira de permitir liberdade à Criação porém mantendo a responsabilidade e a busca pela excelência sempre funcionando.


Na Setembro Propaganda, em Belo Horizonte, trabalhei sob o comando de Davi Paiva, sócio e Diretor de Criação. Era difícil trabalhar com Davi.  Ele detestava música.  Não que detestasse os clássicos ou o samba ou o jazz. Detestava qualquer tipo de música.  Um dia percebi que ele caminhava pelo corredor da agência com diversos LP's, os já então aposentados bolachões de vinil, debaixo do braço.  Aproximei-me e comentei: Davi, você não gosta de música. Para que este monte de discos aí?  Com uma expressão entre orgulhosa e desafiadora, ele olhou-me e mostrou os discos que carregava. Eram gravações de discursos de Carlos Lacerda. 


Davi também detestava mãos. Achava mãos uma coisa feia, sem a mesma harmonia estética do resto do corpo. Assim a Setembro nunca produzia jingles ou peças com fotos de mãos  em close.  Mas era uma pessoa humana extraordinária, de finíssimo trato, elevado senso de respeito profissional e responsabilidade.


Um dia chamou-me até sua sala e comentou como se falasse sobre o tempo ou chás: Gavazza, eu e você temos visões muito diferentes de propaganda. Concorda? Era verdade e eu concordei sem hesitação. Ele assumiu uma expressão de sincera inquietação e prosseguiu: Isto é complicado porque fica impossível trabalharmos juntos. Mas eu sou sócio da Setembro; eu não posso sair da agência.  Ele falava sério e com real preocupação, como ficou provado  no desenrolar da situação.  Bem Davi, acho então que devo sair eu, respondi.  Ele abriu um sorriso como eu tivesse tirado um peso imenso dos ombros dele. Grande, decisão, grande decisão. Foi o seu comentário. Faremos então o seguinte... prosseguiu.


A partir daí, considerando que eu estava há pouco mais de um ano em Belo Horizonte e não conhecia muito o mercado, Davi empenhou-se em procurar uma agência para mim ao mesmo tempo em que me liberava para fazer a mesma coisa em paralelo. Falei para ele sobre duas ou três vagas que encontrei nos dias seguintes e todas ele considerou inadequadas.  Segui trabalhando na Setembro até quando -quase dois meses depois- recebi um chamado de uma agência que ele considerou "ótima". Ligou para o dono da agência e na minha frente fez entusiasmada recomendação recebendo de volta, pelo telefone mesmo,  a garantia da minha contratação.  Só então Davi me demitiu pagando com isso todas as obrigações legais, incluindo aviso prévio.  Fui para o novo emprego e semanalmente Davi me telefonava perguntando se eu estava bem adaptado.  Mais de um ano depois saí de Belo Horizonte e fui para o Rio de Janeiro. A cada Natal e aniversário era infalível um cartão assinado por Davi Paiva.


Ou seja:  as pressões ou neuroses que o levaram a detestar música e mãos, não o transformaram num gestor dos princípios profissionais alheios nem afetaram a sua capacidade de continuar humano, de não queimar em praça pública um publicitário ou pouco se importar com a sua vida, mas sim -muito diferentemente- contribuir para que sua carreira e estabilidade emocional não sofressem hiato ou queda.


Acho que Diretores de Criação pelas características do seu trabalho,  são pessoas naturalmente estressadas, como controladores de vôo ou policiais de West London.  Mas é bom saber que diversos deles conseguem preservar no meio de todo este redemoinho o sentido de respeito ao profissional e buscar no trato com as pessoas, a mesma excelência que exigem dos seus trabalhos.