Cultura

UM CHOPPS E DOIS PASTEL, MEU REI. p/ MARCO GAVAZZA SOBRE CARTA CAPITAL

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| 21/03/2009 às 18:11
Segundo Freud, um charuto é apenas um charuto
Foto: Foto: Arquivo
  Vou meter a colher em assunto que não é da minha conta: desastrosa a matéria Meu Rei, nunca mais da revista Carta Capital, sobre a questão da cultura na Bahia.


   Para começo de conversa, a expressão meu rei  nunca foi criada como uma forma de tratamento dedicado a paulistas -embora estes realmente gostem de se achar reis do Brasil- ou turistas de qualquer outra origem. É coisa do povão mesmo, surgida principalmente como tratamento usado por vendedores ambulantes aos seus "nobres" clientes. Mas, isto é um detalhe.


  Morei muito tempo em São Paulo e sei como é forte a vontade de tornar-se paulista, coisa que já venceu e continua vencendo muitas raízes baianas. Emmanuel Araújo por exemplo, virou paulista. Mas, isto também vem a ser mais um detalhe.


  A matéria é tendenciosa, parcial e venenosa. Querem ver? A comunidade do Unhão não é em nenhum momento um recanto carente da Baía de Todos os Santos (sic). É um condomínio fechado, com praia particular em área nobre da cidade e desfrutando da mesma vista espetacular que Ivete Sangalo, Nizan Guanaes e outros privilegiados baianos. Pequenos barcos de pesca ancorados a metros das casas de dois e até três andares, todas com antenas parabólicas espetadas no teto, mostram que ali moram pessoas que trabalham e vivem normalmente. A carência de quem vive ali é a mesma carência de qualquer outro cidadão trabalhador desta cidade do Salvador: saúde, educação, segurança, transporte, emprego e distribuição de renda.  Mas isto, ainda assim, é também mais outro detalhe, como diria o outro Rei, o Roberto.


  Agora, achar que a cultura baiana ganhou vida porque saiu ACM e entrou Márcio Meirelles não é detalhe: é leviandade absoluta. Não entro nem na questão de comprar capacidade e personalidades. Por princípio, simplesmente é impossível estabelecer um paralelo entre a ação de um Governador do Estado e a de um secretário deste Estado.


  A zona de influência de Márcio Meirelles, independente de cargos, já estava formada há décadas atrás, quando ele era uma tentativa de produtor teatral, e é estática, não tendo sido ampliada nem um metro quadrado sequer.  A zona de influência de ACM era continuamente crescente, independente de cargos, aprovação ou muxoxos.


  O que emana realmente das páginas da reportagem são egos gigantescos, frustrados e ávidos por ocuparem lugares onde estavam sentados Jorge Amado, João Ubaldo, Carybé, Mestre Calá, Mario Cravo, Jenner Augusto, Pierre Verger, Carlos Bastos e incontáveis outros.


 Acontece que nenhum destes artistas foi inventado por ACM. Eram e continuam sendo, artistas extraordinários, de talento inquestionável e reconhecimento internacional.  Jorge não se tornou o escritor mais traduzido do planeta porque era protegido de ACM. Chegou lá por seus próprios pensamentos, sua visão crítica de sociedade, sua capacidade de contar histórias e os tecotelecotecos  na máquina de escrever.


O mecenato não obtém qualquer resultado quando está atrelado à mediocridade.  Michelangelo pintou o teto da Capela Sistina completamente revoltado, por se considerar um escultor e não um decorador.  Mas foi obrigado a fazê-lo por pressão do Papa Júlio II e pela bufunfa que recebia da Santa Madre Igreja. Mas Buonarroti era um gênio e o resultado você conhece.  


Será que foi ACM quem inventou o pornaxé e o pornopagode e por decreto, fez com que passassem a representar a cultura baiana no Brasil e no mundo? 


Arte, quando é arte, não precisa que ninguém aponte o dedo e diga: "vejam, aquilo é arte" e saia listando os motivos de porque aquilo é arte.  Arte salta aos olhos, arrepia a pele, arranca lágrimas, faz sorrir, mete medo,  mistura sonho e realidade, deixa gente sem fala, tira do sério, mexe com a alma.


O fato de Francinaldo Ribeiro circular com um copo na mão durante a abertura do 15º Salão de Arte, em dezembro, no seu vizinho Museu de Arte Moderna da Bahia-MAM (sic), não significa rigorosamente nada para a arte e a cultura baianas. 


A grandiosa escultura "As bundas" de Mario Cravo, no espelho d'água em frente ao Mercado Modelo está lá pra quem quiser ver e se achar pouco, o Parque de Pituaçu tem dezenas delas. Se Francinaldo não viu ainda foi porque não quis.  Na apresentação da Orquestra Sinfônica de São Paulo, na Concha Acústica, também em dezembro, com entrada franca, tinha meia dúzia de gatos pingados. Ao que me consta, não foi interferência de qualquer oligarquia cultural.  


A desavença entre os irmãos Carta e ACM era antiga e feroz. Mas daí a usar a Carta Capital como fórum de discussão sobre cultura baiana, dando abrigo a vozes que representam mais correntes políticas que  arte, é muita pretensão.


Melhor teria sido refletir sobre a cultura paulistana e suas bienais que resultam na prisão de grafiteiros.


Porém, de tudo isso, o que mais incomoda mesmo na infeliz matéria, é a tentativa de situar a cultura baiana como um fenômeno limitado no tempo entre o carlismo e um suposto marcismo, coisa que não chega sequer a ser concreta.  A cultura baiana é uma matéria complexa, muito, muito anterior a ACM.  Ou teriam sido Castro Alves, Ruy Barbosa, Gregório de Matos, Presciliano Silva e até João Alves -negro, pintor e engraxate, que trabalhava na Praça da Sé e tinha seu ponto perto do Palácio Arquiepiscopal- também seus protegidos?  


Forçar uma comparação entre qualquer outra pessoa viva ou morta e Márcio Meirelles é uma tentativa de fazer com que este passe a existir.


Mas como em certa ocasião afirmou Freud, com todo seu conhecimento e ironia,  um charuto as vezes é apenas um charuto.  


Fiquemos portanto com Freud, ao menos por uma questão de segurança.