Cultura

MODERNIDADE É COMO GELADEIRA, COISA ANTIGA, POR MARCO GAVAZZA

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| 06/03/2009 às 21:27
O mundo dos quadrinhos é ilusório e nunca vai chegar ao cotidiano
Foto: Foto: Ilustração
   Quando eu era criança ficava fazendo contas para saber que idade teria no ano 2000. Isto porque me fascinavam as histórias em quadrinhos -gibis para quem conheceu- dos heróis do futuro e este futuro sempre estava situado por volta do terceiro milênio. Pelas minhas contas, era pouco provável que eu estivesse vivo para participar daquelas maravilhas desenhadas diante dos meus olhos. Quando se tem dez anos qualquer coisa acima dos cinquenta é impensável.

   No futuro dos gibis as cidades eram cobertas por imensas cúpulas transparentes e o clima dentro delas controlado.  Não havia transporte coletivo e as pessoas simplesmente deslizavam em calçadas rolantes ou então se sentavam em uma espécie de carrinhos desses de montanhas russas,  que sobre trilhos percorriam silenciosamente -eram elétricos- percursos mais longos. 

  Coisas mais urgentes ou mais distantes eram resolvidas por transporte aéreo individual, uma mochila com propulsores a jato que se colocava nas costas e saia voando por aí.  A alimentação era basicamente sintética com todos os nutrientes indispensáveis e sem a logística e a sujeira existentes desde o campo até o aterro sanitário. 

  Roupas feitas em tecidos miraculosos nunca ficavam sujas e permitiam sempre a temperatura adequada ao conforto. Casas computadorizadas,  saúde de todos os cidadãos monitorada; enfim, um paraíso.


  E aqui estamos nós, quase no fim da primeira década do 3º milênio. Eu estou razoavelmente vivo e as cidades são isso que conhecemos. Lixo, esgotos, carroças, dengue, gente mijando ou fritando acarajé na rua, ônibus deixando pedaços pelo caminho, drogas, fome e violência com paus, pedras, cacos de vidros etc.  O futuro não chegou e seguimos vivendo sobre alicerces inacabados ou escombros do passado.  Pelo menos no 3º Mundo esta é a realidade.


   Se formos amplos em nosso raciocínio, perceberemos que a engenharia, a química, a medicina, a arquitetura e até ciências humanas como a pedagogia, apresentam pouquíssimas inovações ao longo de milhares de anos. Pirâmides egípcias, crânios astecas trepanados e o ábaco estão aí para confirmar, enquanto o câncer permanece um mistério e a medicina não sai da pesquisa. A física quântica nada mais é que uma teoria de Sthepen Hawk derivada das de Einstein que vieram dos raciocínios de Newton, que viu tudo isso na própria natureza. 


  De Galileu para cá, o que houve de tão surpreendente quanto a derrubada do geocentrismo? Só pra lembrar, descemos na Lua em 1969 e ficou por isso mesmo. A estação espacial internacional, ninguém sabe ao certo para que serve. Por falar nisso, sabia que a única estrutura construída na Terra visível do espaço é a Muralha da China, de passado remotíssimo? Ou seja, quase nada de novo.


  Depois que se quebrou a estrutura do átomo qual uso foi criado para ele?  Salvo bombas -que são fáceis de fazer, já que é a força descontrolada- e alguns submarinos que a gente só vê em filmes, mais nada. Avião atômico? Não. Carro atômico?  Também não. Pilha atômica. Nem pensar.  Angra I, II e III, Chernobyl, Three Miles Island e outros, são grandes monumentos à incapacidade humana de usar a força primária do universo. Continuamos então a represar rios, furar o planeta atrás de óleo e queimar florestas. Em resumo: paramos de evoluir.


  A única coisa que aprendemos foi fazer de forma digital, cada vez menores e mais rápidas, as mesmas coisas. Chips. E aí, pela porta dos chips, entra a informática e a comunicação. Estes são na verdade, o nosso único grande avanço. O computador e em seguida a internet formam a única evolução dos últimos 50 anos que chegou até a nossa mesa, transformando costumes, abrindo espaços democráticos, transformando a propaganda e o marketing com a interatividade, resgatando o hábito de ler e escrever, ainda que sem deixar de maltratar a língua portuguesa. 

   O PC -desde 0 386 que nem suportava o Windows- até os note e netbooks, os ipods e outros recursos disponíveis até no Feiraguay, transformaram as relações humanas e consolidaram a aldeia global.  A biblioteca de Alexandria é brincadeira perto a web. Somente no site brasileiro http://www.dominiopúblico.com.br/  existem mais de 100 mil títulos disponíveis para download. A comunicação e a cultura transformaram-se radicalmente depois dela.
 
  Claro que nem tudo foi para melhor, pois os abusos e os perigos também trafegam na web. Mas isto sempre acontecerá enquanto a tecnologia for acionada por mentes humanas. Santos Dumont sentiu isso na pele quando ouviu falar dos primeiros aviões bombardeiros. "Não foi pra isso que eu trabalhei tanto." - disse o paulista.


  Salvo uma ou outra aplicação prática, a maioria das "grandes" invenções contemporâneas não tem maiores serventias.  Sua casa tem alguma fonte de iluminação revolucionária ou é tudo na base do bulbo de vidro com filamento ou gás dentro, que esquenta mais que ilumina? Isso, a lâmpada.  Além delas, tenho as antiqüíssimas velas; pois moro perto da praia e distribuição de energia elétrica ainda não é um sistema totalmente confiável.

  Maresia, ventos, sobrecarga, tudo isso pode fazer com que fios se dissolvam, a rede caia e as chamas sejam novamente necessárias para afastar as trevas. No terceiro milênio da era "moderna", o fogo ainda é a nossa única fonte confiável de calor e luz. O mesmo fogo que Prometeu roubou de Marte e a gente sabe como os escoteiros fazem mas nunca conseguimos fazer.


  Se vocês acham que estou exagerando me acompanhem. Arado mudou? Geladeira mudou? Telefone mudou? Navio mudou? Elevador mudou? Rádio mudou? Seringa mudou? Sapato mudou? Não. Nada que é cotidiano mudou. Tudo melhorou, é verdade. Tudo ficou menor ou mais rápido, prático, durável, versátil, mas é ainda, por princípio, a mesma coisa de quando foi inventado.


  Se D. João VI fosse apresentado por Graham Bell ao celular comum, provavelmente faria o mesmo comentário: "Isto fala". E pronto. Se formos também um pouco cínicos em nossos comentários, podemos dizer sem medo de errar: a modernidade está aí, há séculos.  E eu esperando por ela desde os dez anos de idade