Descobriram que o Banco do Brasil, agência do Garcia, vai se apropriar do Beco dos Artistas e fazer dele um magnífico estacionamento para seus clientes. Antes de virar território livre de militantes gays, o Beco dos Artistas era só isso mesmo: um beco no bairro do Garcia freqüentado por artistas.
Com violões e outros instrumentos tão portáteis quanto, diversos músicos ou gente com pretensões a isso, aproveitava os botecos do próprio e do entorno para ali mesmo fazerem suas performances. Do beco saiu, entre outros valores da nossa música out of mídia, o Sexteto do Beco, grupo em que um dos principais componentes é o violonista Aderbal Duarte, velho amigo de farras pelo interior da Bahia e considerado um dos maiores instrumentistas nacionais e internacionais.
Depois de algum tempo, o Beco continuou a ser dos Artistas, mas passou a receber grande freqüência de gays, onde também se incluem sempre inúmeros artistas de qualidade, das mais diversas tendências. Transformar o Beco dos Artistas num estacionamento é evidentemente uma insensatez do "banco dos brasileiros". É mudar de Beco dos Artistas para Beco do Brasil, atropelando a cidade, os cidadãos, a boemia, a musicalidade, a espontaneidade, a alegria e outras coisas que ajudam uma cidade como Salvador a permanecer levemente humana.
Porém a notícia segue com a informação de que o Grupo Gay da Bahia enviou correspondência ao Ministério Público denunciando a intenção do BB e pedindo providências que impeçam a insanidade, incluindo o "tombamento" do Beco. Aí também já é exagero.
Preservar a cultura é uma emergência nesta cidade, incluindo seus monumentos e construções históricas caindo aos pedaços. Mas gente, tombamento não é senha para fila do INSS que se distribui aos milhares. Não basta alguém desmaiar de tédio, cansaço ou irritação e pronto: a criatura está tombada. Chama-se o IPHAN e providencia-se para que ela seja considerada patrimônio imaterial e depois se tenta até envolver -quem sabe- a UNESCO e conseguir o tombamento internacional.
Tem que haver uma reação forte o suficiente contra a pretendida agressão do Banco do Brasil aos costumes, à tradição e aos espaços humanizados da cidade, mas tombamento também já demais. É preciso haver coerência de critérios.
Nesse ritmo vamos logo tombar o tabuleiro de Dinha, as mesas debaixo das amendoeiras do Boteco da Graça, a borracharia da Avenida Canal, a banca de peixes de Galiza no mercado de Itapoã e até o carro do esforçado Alceu -conhecido como Abará- uma Variant indestrutível, de ano indefinido e que transporta baianas de acarajé com toda sua logística, madrugadas afora.
Tombemos logo o ferry Agenor Gordilho, antes que Netuno resolva tombá-lo em plena travessia Bom Despacho-São Joaquim. Nessa linha também carece de tombamento a Sorveteria da Ribeira, o Cacique Chá e -porque não?- as coluninhas do metrô de Mario Kertèzs, ainda espalhadas pela cidade e sem serventia alguma, como nunca iriam ter. Qualquer pessoa de bom senso percebe que a ação do BB é inaceitável, mas também não vê o tombamento do Beco dos Artistas como solução.
Mas, reflita comigo, porque tal coisa chega a ser cogitada por pessoas cultas, engajadas, capazes de desafiar padrões em busca de sua individualidade, bem informadas e atualizadas? E porque em seguida essas pessoas formalizam a idéia junto ao Ministério Público? Simples. Porque isto vira notícia, vai pra mídia e esse hoje, é o máximo desejo da imensa maioria de habitantes deste imenso BBB que é o Brasil. Refiro-me ao programa de televisão, não ao banco com um B a mais.
O poder da mídia tornou-se tão grande em nosso país, que todos fazem qualquer coisa já pensando nela. Basta um jornal, uma rádio, um site, um radialista ou um apresentador de tv abraçar uma causa e ela imediatamente vira fórum nacional, levando para as manchetes quem surgiu com aquela causa, não importa muito se pertinente ou não, importante ou não, válida ou não.
Ao perdermos o contato direto com os primeiros formadores de opinião -que estavam em nossas mesas de refeições, em nossas salas de aula, nas ruas do nosso bairro, ao vivo e falando conosco- estes foram substituídos pela imprensa. Avós, pais, tios, mestres, acadêmicos, personalidades respeitáveis e próximas eram nossas primeiras referências e pontos de vista sobre o que estava acontecendo. Isso acabou e a imprensa, além da sua função principal de informar, elevou a sua também função de opinar, a níveis absurdos.
Se ao final do Jornal Nacional, Wiliam Bonner olhar fixamente para a lente e com aquela expressão de profundo conhecedor, disser: "Severino de Maria, estudante universitário em Salvador comprou hoje -pausa- o castelo de Minas Gerais. Boa Noite."; no segundo seguinte o telefone de Severino toca e do outro lado a mãe dele diz em voz chorosa: "Meu filho, você nem me contou!". Severino nunca vai conseguir convencer ninguém de que não comprou nada, nem uma casinha e que sequer sabia da existência de um castelo à venda.
Numa época em que anônimos transformam-se em celebridades da noite para o dia e que reputações -boas ou más- são construídas ou destruídas em poucas páginas, a mídia tornou-se um potencial aliado de qualquer um, para qualquer objetivo. Se você convocar uma coletiva com a imprensa informando que tem sérias revelações a fazer sobre a vida íntima de seu vizinho, pode ter certeza de que pelo menos uma dúzia de credenciados baterão à sua porta.
Assim, a imprensa -que agora deve ser chamada de a mídia- saiu de sua posição institucional de 4º poder para estar acima dos outros três, influenciando-os ou sendo por eles influenciada. A imprensa decide se Batisti é criminoso ou herói, se Felipão rendeu-se aos euros ou não, se Ronaldinho prefere travestis ou chutes a gol, se aquele casal matou a menina Isabela ou não.
Portanto, tenha muito cuidado com as opiniões que chegam até você através da imprensa, porque até eu -enquanto não pedirem o meu tombamento- fico aqui dando palpites sobre isso e aquilo.