Cultura

O MORRO MANDOU ME CHAMAR E O CARNAVAL DE SALVADOR, POR MARCO GAVAZZA

Vide
| 11/02/2009 às 12:25
George W. Bush, citado como responsável pela falta de patrocinadores no Carnaval
Foto: Foto: Arquivo
 Até virar tema de enredo da Mangueira, Tom Jobim jamais foi visto em qualquer grupo ou evento sequer de longe associado ao Carnaval carioca.  Naquele ano atendeu o chamado do morro, desfilou "de terno branco e chapéu de palha" e voltou imediatamente para o discrição da sua fama internacional.  Bem diferente das atrações e artistas baianos, que ao longo do ano se apresentam em centenas de oportunidades; desde micaretas, pré e pós-carnavais, shows, lavagens, bailes juninos etc. até batizados, inaugurações, casamentos de filhos de políticos, feijoadas diversas, aniversários de botequins e -se deixarem- funerais.  Esta é apenas uma das  razões para o esvaziamento do Carnaval baiano. 


Passei muitos anos fora da Bahia e lembro perfeitamente da minha total surpresa  ao voltar e ouvir pela primeira vez o termo "abadá".  Descobri então que mortalhas, caretas, pierrôs, negas malucas, noivas, bebês chorões e outras fantasias saídas da criatividade popular estavam enterradas no passado. O hit era o tal abadá. Uma farda sem nenhuma graça e ainda suporte publicitário, como aqueles dos homens-sanduíches comprando ouro no centro de São Paulo. 


Descobri em seguida que havia também "circuitos" para desfiles dos blocos e trios, com grade de apresentação, ordem de colocação na fila, horário de saída e local para a concentração.  Descobri ainda que existiam os "blocos alternativos" coisa que até hoje não sei ao certo o que é. Mas uma coisa estava clara: nem pensar mais em reunir o pessoal numa barraca no Relógio de São Pedro e sair atrás do primeiro trio que passar. 


Finalmente fiquei sabendo que ao longo dos circuitos haveria "camarotes" para quem desejasse ver aquela maravilha toda com mordomias, conforto e tão longe do cheiro do povo quanto desejava o ex-presidente João Figueiredo. Não precisava ser futurólogo nem PHD em marketing para ver que aquilo tinha prazo curto de validade.


Era um carnaval com formato montado estritamente em função de musas e musos que desfilariam em seqüência, no alto -cada vez mais alto- dos trios elétricos agora pertencentes a patrocinadores e cercados por cordas.  Qualquer um  perceberia que se estes musos/musas não fossem renovados continuamente ou se outras atrações não fossem introduzidas, chegaríamos ao inevitável ponto de saturação. Chegamos. De tão presentes no dia a dia da cidade as atrações acabaram virando "mobiliário urbano"  e ninguém paga dezenas de vezes ao ano para assisti-los.   Quando uma coisa é grátis -como sempre foi o Carnaval- e de repente passa a ser cobrada, é natural que o consumidor exija a sua "mais valia"  ou algo que justifique tirar a grana do bolso para fazer a mesma coisa que fazia antes absolutamente free.  


No Rio, em Pernambuco, em Olinda -até em São Paulo- e outros carnavais que vem se firmando enquanto o nosso desce a Ladeira da Praça, quem é da festa só aparece na festa. Você já ouviu falar que a bateria da Mangueira iria tocar em algum happy hour num hotel do Leblon? Nunca.  Ou ao contrário, teve notícias de que Maria Rita iria puxar o samba-enredo da Vai-Vai? Também não.


Aqui é diferente. Ou melhor; é sempre igual. Nossas principais atrações são tão velhas quanto o lança-perfume ou então são arroz de festa. Porque então pagar cada vez mais caro pra ver no Carnaval o que se vê o ano inteiro, dia após dia, nos palcos, televisão, comerciais, outdoors, jornais, revistas, cartazes, banners, internet; numa massificação gigantesca de suas presenças? 


Desmontaram o Carnaval de Salvador e afastaram o povo da festa com um marketing equivocado, um marketing de alto risco, focado apenas em captação e jamais em renovação de atrações, novidades, surpresas, beleza ou integração. As estrelas foram escaladas e em seguida saíram atrás de patrocínios, esquecendo de que é preciso renovar continuamente aquilo que se pretende vender. Aí esvaziou.


Ao perceberem isso já estão buscando um bode. Foi George Bush com sua economia desastrada e a crise mundial. Quem mais poderia ser?  Pior é que não foi só Bush o acusado pela crônica da morte anunciada. Tem gente que encontrou outros culpados além da retração das multinacionais por causa da crise. (sic)


Decidi escrever esta matéria ao ler isto, pois jamais pretendi me envolver com o marketing do carnaval. Mas diante do que vi escrito nos jornais locais do fim de semana passado, é impossível ficar quieto e não tentar mostrar que o rei está -no mínimo- em trajes íntimos. 


Segundo marketeiros ungidos oficialmente, parte da culpa é dos 117 blocos de matriz africana, que não são patrocinados por ninguém. (!!!) Eles afirmam do alto de sua autoridade que as grandes marcas se recusam investirem em afros e afoxés embora sejam bons produtos e bons para retorno de investimento, por falta de conhecimento. Os afros precisam desenvolver um novo modelo, serem atrativos, deixando de serem pedintes para serem o bolo.  (sic)


Estamos falando de Bolsa de Valores, Mercado Futuro, Fundos de Pensão, essas coisas que ninguém entende?  Não. Estamos falando de Carnaval. Estamos falando de notebooks,  celulares, televisores ou outros produtos que se reciclam para não perderem mercado? Não. Estamos falando de grupos carnavalescos com dezenas de anos de tradição e que se baseiam numa cultura milenar e estável.


Mas sabemos não é por aí. O responsável é o marketing unilateral, sem visão de futuro. Prefiro ficar por aqui. Em resumo, teremos um carnaval em que os mesmos convidados das multinacionais e os mesmos endinheirados estarão nos mesmos camarotes super-hiper-mega-infra-estruturados, assistindo as mesmas atrações de sempre, em troca de algum favor para quem patrocina ou de um gordo cachê.  Lá embaixo, no asfalto e com uma latinha de cerveja -de qualquer marca- na mão, a classe média cada vez menor, se endivida um pouco mais. Enquanto a Prefeitura fica esperando que Obama tome alguma atitude e os afros/afoxés se produzam, se transformem em "produtos merecedores de investimento",  para que ela possa custear parte da festa cara que virou o carnaval baiano.  Difícil acreditar, mas é isso que afirmam.


E aquela grande festa espontânea que era o carnaval?    Não sei, não entendo de carnaval. Entendo -um pouco- de marketing e acho que a frase de João Jorge do Olodum,  no mesmo fim de semana, responde bem: Quem tem os patrocínios tem melhor qualidade técnica mas não tem fantasia, criatividade.


Também não existe marketing sem criatividade e pelo que eu saiba, não existe carnaval sem fantasia.