Cultura

LIBERDADE É UMA CALÇA VELHA AZUL E DESBOTADA, POR MARCO GAVAZZA

A família perder o formato padrão. P/ contato gavazza@eurofort.com.br
| 07/01/2009 às 12:02
Gavazza comenta a fidelidade na propaganda e nos relacionamentos humanos
Foto: Foto: Arquivo
   Todos sabemos que a fidelidade -especialmente entre nós, tropicais- é uma coisa difícil; seja ela partidária, esportiva, corporativa etc. É algo tão brasileiramente volátil que qualquer boteco de esquina apela para as estratégias de marketing e lança seus cartões de fidelidade prometendo uma moela ou um choppinho de graça se o freguês permanecer fiel.


   Nos relacionamentos humanos a fidelidade segue sendo uma sombra que paira e ameaça constantemente amizades ou casamentos com raras e nobres exceções. Sabemos também que no mundo adulto das relações pessoais o álcool é um poderoso incentivo à quebra da fidelidade. Um gole a mais e um amigo torna-se inimigo ou alguém vai parar na cama de outro sem saber muito bem porque.


   No mundo dos mais jovens, a fidelidade ainda não é um valor moral firmemente estabelecido, até mesmo em função da própria condição de aprendizado através da experimentação. Mas agora ficamos sabendo pela propaganda que a fidelidade entre adolescentes pode ser ameaçada também por um gole de uma simples Pepsi. Pelo menos é o que nos diz o comercial do refrigerante que está atualmente no ar. 


  Não sou exatamente um moralista e inclusive acho que a propaganda em quase 100%  de suas campanhas de produtos cria mundo irreais e totalmente distantes daquilo que vem em seguida, seja na programação da tv ou nas páginas de jornal e revistas. Depois da família feliz bebendo determinada marca de suco no café da manhã vem a família em guerra da novela ou -muito pior porque real- a família destroçada do telejornal. 


   Acredito que a propaganda deveria se aproximar um pouco mais da realidade, ter o cotidiano como parâmetro sem evidentemente ter as tragédias como inspiração.  Ser mais concreta sem esquecer o cuidado com o lado saudável da vida. Mas quando se trata de mensagens publicitárias voltadas para adolescentes, o máximo de cuidado ainda é pouco.


  Nossos jovens estão vivendo em um ambiente social totalmente diverso daquele que poderia lhes garantir a natural incorporação de valores éticos, morais e de respeito.  As escolas que assumiam parte desta responsabilidade abriram mão do encargo faz tempo. A família perdeu o formato padrão e hoje pode ser um agrupamento aleatório de pessoas  com pouco ou nenhum tempo para que os adultos -pais, padrastos, madrastas, mães, tios e tias- possam fazer integralmente este trabalho.


   O resultado é que os jovens estão aprendendo a viver aos trancos e barrancos, trocando inexperiências entre eles próprios e conhecendo o mundo através da mídia, na qual se percebe a predominância da impunidade, a vitória dos inescrupulosos, a beleza física como valor maior de vida, a competição desenfreada e sem qualquer regra, o consumo como uma obrigação e as drogas como uma coisa natural.  Assim, falar com esse público seja lá através de qual meio for, exige uma profunda avaliação do que se está dizendo e como. 


   Quando uma marca poderosa com a Pepsi leva ao ar um comercial em que a fidelidade de uma garota ao seu namorado é quebrada pela tentação de um gole de refrigerante,  por mais ingênua que pareça a brincadeira, ela não é. 


   Eu sei, a propaganda não é a vida real, mas o que ela vende é. Apartamentos, carros, perfumes, sandálias, refrigerantes são reais e portanto as situações ou ambientes em que eles são colocados tendem a ser visto como reais ou sugerem uma possível realidade.  Principalmente para o grupo de que estamos tratando,  cujo discernimento entre realidade e fantasia ainda é precário. 


  Mostrar a fidelidade como algo que tem o valor de um gole de Pepsi é um erro moral.


  Mesmo que para a garotada a fidelidade ainda não seja algo indispensável às relações humanas,  devemos ensinar-lhes  que é. Só assim eles amadurecerão esta idéia e talvez venham a incorpora-la em suas vidas quando adultos.  Se ao contrário, lhes mostramos que ela vale quase nada,  estamos nós publicitários, contribuindo para que o futuro seja pior quando na verdade a nossa principal responsabilidade e atribuição -neste caso- seria vender mais refrigerantes.


  A propósito, o título deste artigo é um trecho de um jingle usado pela Levi's numa campanha antiga para vender seus jeans ao público jovem.  Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada.  Além do seu produto, ela vendia o conceito de que a formidável aventura de lançar-se pelo mundo em busca de outras vivências (vestido numa Levi's, claro) é uma forma de liberdade.  Muito melhor que  um gole de Pepsi como forma de quebrar a fidelidade de alguém.