Cultura

LEMBRANÇAS DA RUA SÃO JOSÉ, EM LISBOA, E AS TELAS DE ART NOVEAU

Vide
| 09/11/2008 às 12:18
    Em paralelo a avenida da Liberdade, coluna vertebral do centro de Lisboa, corre uma longa e pouco sedutora rua nem reta nem torta. A rua São José é um pouco como os bastidores do cintilante palco vizinho, avesso cinzento da luminosa via.
 
  Mas é lá que, com freqüência, eu passava tardes inteiras, parando a cada brechó, loja de móveis usados ou antiquário, desde o Coliseu até o Marquês de Pombal. Rosário familiar dos amantes e profissionais do Objeto.


  Na loja, geralmente abastada de banalidades, do senhor Jesus, amável judeu de nariz e carteira, apesar do nome, numa tarde chuvosa de março, duas grandes telas do mais puro Art Nouveau me esperavam.
 
  Obedecendo a desconhecida lógica, a maior representava uma mulher, a menor, uma criança. Um pedaço de mulher, aquela! Vestida de brancas transparências, ambígua inocência.

  De costas, mas o rosto virado para mim, ela colhe uma maçã. Jardim dos Hesperídios revisto por pincéis burguesamente provocadores. Longos cabelos negros coroados de flores não encobrem ancas amplas, já prontas a procriar, enquanto a forma de um seio ainda denuncia a adolescência.
 
  Um putto - o amor não podia estar ausente - levanta a mãozinha, reclamando a fruta. Apesar da explosão de flores do primeiro plano, o olho, quando se perde nos campos do fundo, adivinha o verão.


  "Lá, tout n´est qu´ordre et beauté, luxe, calme et volupté"*


   Charles para famílias comportadas.


  O outro quadro, bem menor, quase o terço do primeiro, representa uma menina de perfil. Rodeada de hortênsias, castamente nua, respira, inebriada, o perfume de um cravo vermelho. Prenúncio da Revolução dos Cravos?


  Terei com estes dois quadros uma convivência aprazível até o resto de minha vida.

Pelo menos, por enquanto, assim espero.


   Um amigo, Tozé, comissário da Tap, ainda no fim dos anos 70, teve a pachorra de me trazer estas duas imensas telas enroladas, machucadas. Dois anos depois, morreria de aids, como tantos outros amigos e conhecidos. Nunca as viu instaladas.


   Penduradas frente a frente na minha biblioteca, dão a sala este ar de respeitabilidade que se harmoniza tão bem com os velhos livros. Aqui passo boa parte dos dias. Quem entra por primeira vez, ao levantar os olhos, repara o belo forro de madeiras gastas onde suntuosos restos de pintura revelam mais hortênsias, cravos e maçãs.
 
   Obra de uma hábil artista inglesa, a amiga Alice, que soube, tal engenheiro calejado, encontrar a colocação adequada das tábuas numa sala brigada com os ângulos retos. Em volta do forro corre uma frase de Gustave Flaubert " Ne lisez pas comme les enfants lisent, pour vous distaire, ni comme les ambitieux lisent, pour vous instruir. Non. Lisez pour vivre"**.


  A biblioteca, que ostenta mais objetos e quadros do que livros, foi inaugurada por um quarteto de lindas flautistas sob a regência da Elena, fiel companheira de saraus e concertos.


  Nesta sala, como no resto da casa, a sombra dos amigos entra na composição até da argamassa, na luz do entardecer, nas noites estreladas de verão. A eles as maçãs de Domingos Costa e as mais belas flores dos edens lusitanos.
 

   *"Lá, tudo é ordem e beleza, luxo, calma e volúpia" Charles Baudelaire.


**" Não leia como as crianças lêem, para se distrair, nem como os ambiciosos lêem, para se instruir. Não. Leiam para viver" Gustave Flaubert.