Cultura

TRÊS CAMELOS, UM JEGUE E UM SAPO NA COLEÇÃO DE DIMITRI GANZELEVITCH

Dimitri Ganzelevicht é artista plástico e agitador cultural
| 11/10/2008 às 17:14
    Você nunca deve ter ouvido falar de Tafraout e é uma pena, Não sabe o que está perdendo.

    Como ir? Muito simples. Basta correr ao longo da costa marroquina, estrada única, durante 900 kilômetros a partir de Tanger e virar para dentro do país mais uns 100 km e pronto. Chegou.

   Este milhar será pontuado de vilas brancas e azuis, fortes portugueses e douradas praias até começar a subida do anti-Atlas rumo a um modesto povoado que na minha adolescência não devia ter mais de quinhentas almas.

   Estamos falando de almas muçulmanas, evidente, mas tão dignas de paraíso quanto você, leitor (a) cristão (a) e cético (a). Gente hospitaleira, simples e feliz onde as mulheres trabalham e amamentam sem nunca abandonar suas tradicionais jóias de prata esmaltada, coral e ouro.


   Fora lá passar umas feiras de Semana Santa porque o segundo marido de minha tia Lucie, oficial do exército francês, comandava um posto sem importância. O dito seria causa direta de meu precoce antimilitarismo. A caricatura do colonialismo exacerbado. Medíocre, convencido e colérico. Melhor falar de outra coisa...


    Imagine um circo de enormes e caóticas pedras arredondadas de granito rosa que o crepúsculo primaveril transforma em sinfonia de roxos, violetas e lilases enquanto a voz do muezzin, desde o pequeno minarete, chama os fieis à oração do anoitecer.

   A volta do oásis, milhares de amendoeiras em flor abusam de tanta brancura leve. A casa do comandante, como todas as outras, é de pedra, tetos em terraço, paredes pintadas de barro avermelhado. A vida cotidiana gira a volta do pátio interno onde laranjeiras balançam seus ramos ao menor sopro de brisa.

   Todos meus sentidos de adolescente - tenho quatorze anos - estão em alerta, transtornados por tanta beleza silenciosa. Um rebanho de carneiros passa, com seus cães, jegues e pastores. Cinco camelos, balançando seu pescoço, avançam, preguiçosos, sob os gritos de uma mulher embrulhada em longos panos pretos que só permitem a visão de um olho.


  É dia de mercado. Souk, dizem os magrebinos. Grande agito na praça. Além das queixas dos carneiros, o sonoro lamento dos burros e eventual protesto dos camelos, coloridas galinhas, atadas impiedosamente pelas patas, reclamam em sostenuto do desconforto. Homens e mulheres, sentados no chão, vendem os produtos da terra.

   Pães de açúcar, hortelã, legumes, montanhas de tâmaras de todas as cores e tamanhos em grandes cestos de palha, khol para enfeitar o contorno dos olhos, pentes de madeira, com dentes muito finos para tirar piolhos, talheres de madeira ou de ferro batido, pratos de cerâmica com tampa cônica para o tagine, folhas e amuletos.


   É no meio das cerâmicas que, de repente, noto vários pequenos animais de barro amontoados sem cuidado. Mal se distinguem da poeira do chão. A fatura não é das mais requintadas, a coloração é eventual, uns simples traços. A visão destas peças é uma descoberta.

   Peço a minha avó um dinheiro para comprar cinco delas. Estranhando tão insólito pedido, ela me dá algumas moedas. 


    Foi assim, naquela manhã de primavera saariana, que comecei minha bizarra coleção. Três camelos, um jegue e um sapo. Coleção que chegaria ao absurdo de muito mais de mil objetos e quadros. Guardo até hoje, em evidencia numa estante, como tesouro, estas simples peças. Estão todas em perfeito estado de conservação e mostro-as com desmedido orgulho e secreta emoção.


     De que semente nasce uma paixão?