Cultura

O PORTO DA BAHIA, LEMBRANÇAS DO MOREIRA NA PENA DE NESTOR MENDES JR.

Nestor Mendes Jr é jornalista baiano, atualmente trabalhando em Angola
| 06/09/2008 às 13:00
  Uma parte da velha Bahia, de Caymmi, Jorge Amado, Carybé, Pierre Verger e Mestre Pastinha, ainda resiste entre as paredes do Porto do Moreira, em meio às bancas de flores - da entrada do Largo Dois de Julho. Cravos e rosas que nos remetem também a um passado de delicadeza, poesia e muita boemia nas terras do entorno da Baía de Todos os Santos.  

  Os irmãos Chico e Antonio Moreira são uma espécie de precursores baianos da técnica da criogenia - o congelamento para revivificação futura, misturada, é claro, com cerveja estupidamente gelada. No Porto do Moreira, há 70 anos, mantém-se intacto o espírito da nossa genuína baianidade.  

  Pelas mesas de toalha xadrez da "casa de pasto e espírito" fundada pelo carpinteiro português José Moreira, em 7 de Setembro de 1938, passeia o baianíssimo espírito de Gereco, Odorico Tavares, Adroaldo Ribeiro Costa, Guido Guerra, Carlos Sampaio, Calazans Neto, Antonio Lins, Batatinha, Jehová de Carvalho, Anísio Félix e Glauber Rocha.  

  São tantos nomes que por lá passaram - preservados no tempo e na memória de pratos de uma culinária que não é portuguesa, porque baiana. Mas também que não é baiana, porque ainda estão lá as mãos de D. Maria a puxar para o Tejo e o Douro o tempero daqueles acepipes.  

  Em sete décadas, o Porto do Moreira e todos os seus comensais, ajudaram a fundir e a difundir as marcas da Bahia: hospitalidade, humor, aconchego, mesmo quando um dos irmãos Moreira - não vou declinar nomes agora para não empanar a gala - está de péssimo humor. Aliás, o mau humor também faz parte da vida e das alegrias de se frequentar a casa do Largo do Mucambinho.  

  Que o digam o mano Américo Moreira, Foca, Evaristo, Marcos Mello, Isidro Duarte, Tasso Franco, Graciliano Bonfim, Marco Ribeiro, Roque Mendes, Fernando Vita, Jorge Teixeira, Samuel Celestino, Eduardo Magalhães, França Teixeira, Raimundinho Vieira, Gerson Gabrielli, Edmundo Pinheiro, Florisvaldo Mattos, Manoel Canário, Carlos Libório, José Raimundo, Souza Filho, Alberto Freitas, Paolo Marconi, Raul Rá-da-Bahia, Armando Lemos, Dirlene Mendonça, Lulu, Valmar Hupsel, Edil Pacheco, Alberto Miranda, Paulo Gaudenzi, Alberto Oliveira, Manoel Castro, André Valente, James Correia, Dultra Cintra, Marcos Viana, Paulo Bina, JP Costa, José Américo Moreira, Benito Gama, Fernando Barros, Alexandre Augusto, prefeito Imbassahy, governador Paulo Souto e tantos outros. Todos eles têm uma história a contar do Moreira.  

  Lembro-me de que fui pedir ajuda ao ministro Peçanha Martins para que o Judiciário interviesse na questão da redução das porções nos pratos. O próprio ministro reclamou: "minha galinha ao molho pardo tem mais batata". Antonio Moreira não se fez de rogado: "Ministro, o sr. não está me dizendo nada: a batata está mais cara do que a galinha".  

   Em outra ocasião, em companhia de Alberto Freitas, do saudoso José Rodrigues de Miranda - o Irecê - e mais uma cambada, nos recusamos a pedir o Cointreau, que Antonio havia duplicado de preço acintosamente na nossa frente. Ficamos 15 minutos de braços cruzados. Moreira inchou, mas deu o braço a torcer, o que lhe custou, segundo Chico, um piripaque tratado na Cardiopulmonar.

  Semanas depois, em companhia de Roque Mendes, Antonio deu o troco, falando baixinho, ao meu ouvido, quando pedi-lhe uma Antarctica Pilsen Extra: "Vá almoçar na casa da p...". Sei que alguns levaram a mesma advertência, em outras ocasiões, a sério, mas, com o tempo, refizeram as amarras ao Porto.  

   Ensinei a meu filho Ian, então com dois anos; e, anos depois, a meu afilhado Tassinho, filho dos meus compadres Tasso e Ohara, a dizer "Moreira, ladrão", quando fossem cumprimentar Antonio. Para os amigos, a ofensa é uma espécie de bordão no restaurante, embora, às vezes, o indigitado esperneie. A questão da conferência das contas, então, nem a Abin resolve. Por exemplo, um grande jornalista baiano é adorado pelo proprietário, mas a mulher dele... (Somente porque ela tem o "péssimo" hábito de conferir a factura).  

  Outro dia lendário foi quando os clientes do Porto, liderados por Marco Ribeiro, fizeram um almoço de desagravo ao garçom Soró, demitido porque se recusara a fazer papel de office-boy. Em uma tarde de sexta, lá estava Soró servindo-se de muqueca de camarão e pedindo a um Moreira mais inchado ainda: "yes, please, mais pirão".  

  A outorga da Medalha Thomé de Souza, proposta por Emiliano José, foi outro momento conturbado nesses 70 anos dessa história fantástica do Porto do Moreira, mais que um restaurante - um ponto de encontro da fraternidade da Bahia. Por causa de promessas não levadas a sério por quem lhe garantiu uma "beca" para a solenidade, Antonio rompeu relações com meia dúzia de comensais.

  Prevenido, na véspera do regabofe, levei-lhe uma caixa de Porca de Múrcia (que soube, por fontes seguras, ter sido revendido no restaurante). Tentei recompor os laços para os amigos, argumentando que aquela era uma homenagem de todo o povo baiano, que era para poucos. Antonio não se importou: "você quer me pagar quanto pela comenda?"   Muitas histórias guardam as paredes do velho Porto do Moreira, na minha vida há 25 anos. Por lá, a lei de que o freguês tem sempre razão nunca existiu nem existirá.

  Mas é ali que somos felizes, nos deliciando com uma boa comida, sabendo em primeiro mão notícias que nenhuma Internet irá jamais furar. Chico, tricolor absoluto, a equilibrar os rompantes de Antonio, embora das últimas vezes que tenha ido lá, este tenha me chamado para segredar ao pé do ouvido: "Chico tratou mal um freguês. Esse departamento é comigo. Se isso virar moda, a casa quebra".  

  Um abraço a Chico e a Antonio, aos garçons Ailton e Antonio, às meninas da cozinha pelos pratos inigualáveis. Feliz 70 anos, nosso amado e imprescindível luso-baiano Porto do Moreira.