Marcelo Gentil
18/03/2021 às 15:07
Naquela sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021, o Pelourinho, que já se encontrava parado em função do pandemônio provocado pelo coronavírus, quedou-se em um silêncio ensurdecedor pactuado com os tambores do Bloco Afro Olodum. Naquele dia, o Pelô não pode entoar os versos do compositor Tatau, que dizem: “Sexta-feira eu vou subindo o Pelourinho/ Eu sou Olodum, saia do caminho”.
O Olodum é reconhecido mundialmente pela combinação das cores dos seus tambores, que são as cores do pan-africanismo: o verde, o vermelho, o amarelo e o preto. Reconhecido, principalmente, pelo ritmo do samba-reggae que percute dos mesmos tambores e que encanta aos cidadãos comuns, simples mortais -, mas também às grandes estrelas do mundo das artes e, em especial, da música, como aconteceu com Daniela Mercury, Gal Costa, Simone, Jimmy Cliff, Paul Simon e Michael Jackson, entre tantos outros.
Em muitos outros momentos do passado, os tambores do Olodum rufaram em alto e bom som, para protestar contra o racismo e reivindicar direitos para todos, em especial para o povo afro-baiano. Igualmente, em outros momentos, esses mesmos tambores se calaram em protesto contra a morte de um de seus músicos, covardemente assassinado por um preposto da Polícia Militar baiana. Desta vez, a voz dos tambores foi embargada por outro motivo, que diz respeito a centenas de milhares de brasileiros.
A sexta-feira, historicamente, marca o primeiro dia de desfile do carnaval do Bloco Afro Olodum. A cidade e a imprensa do Brasil e do mundo – blocos de anotação, microfones, câmeras fotográficas e de filmagens - voltam as suas atenções para a abertura do desfile, que em um primeiro momento, acontece entre a Rua das Laranjeiras, saindo da frente da Escola Olodum, indo até a Casa do Olodum, na Rua Gregório de Matos.
Neste local, a percussão, formada por 120 percussionistas, entre homens e mulheres, por aproximadamente 1 hora, se exibem, fazendo suas performances de toques e danças, antes de seguir para o Circuito Osmar no centro da cidade. Ali, desfilam arrastando multidões de pessoas que, ansiosamente, aguardam o rufar dos tambores do “Exército do samba-reggae”, como é chamado o batalhão formado por homens e mulheres de diferentes bairros de Salvador. Nesse roteiro, sempre empunham os seus tambores para fazer jus a um dos grandes sucessos do Olodum que afirma de maneira peremptória: ... “A arma é musical/ Tocando reggae, tocando jazz, tocando blues/ Eu louvo a Jah eu digo/ já chegou o Olodum”.
Em entrevista concedida para o Portal de notícia G1 na sexta-feira em que se iniciaria o carnaval do Bloco Olodum, o cantor do Olodum Lucas de Fiori, ao refletir sobre este momento que mescla angústia, dor e sentimento de impotência, descreveu:
"Hoje os nossos tambores estão em silêncio. Não apenas para dizer que não haverá carnaval, o tambor do Olodum silencia em respeito as pessoas que perderam as suas vidas para a Covid19!"
Já a maestrina do Olodum, Andreia Reis, postou em suas redes sociais: ...
"E hoje, seria o grande dia !! O dia em que os tambores iriam Rufar em frente a casa do Olodum. Os sons da percussão invadindo o centro histórico, e nessa invasão iria consigo sentimentos… De felicidade, amor e gratidão. Estamos passando por momentos difíceis e delicado. Vamos ter mais respeito com a vida humana, vamos ter mais empatia com o próximo. Vamos respeitar"
Em 12 de fevereiro de 2021, segundo o Consórcio dos Veículos de Imprensa , uma vez que o Ministério da Saúde deixou de informar os dados consolidados de Covid-19, eram registrados mais 1.204 mortos em um intervalo de 24 horas pelo Brasil, contabilizando 51.546 novos casos, com uma média móvel de 45.519 novos casos em 7 dias, perfazendo até ali um total de 237.601 mortos e 9.765.964 casos, desde o início da pandemia.
Um estudo publicado em 24 de novembro de 2020 pela Faculdade de Medicina da UFMG a respeito da mortalidade por Covid-19, em São Paulo, destaca que:
“Homens negros são os que mais morrem pela covid-19 no país: são 250 óbitos pela doença a cada 100 mil habitantes. Entre os brancos, são 157 mortes a cada 100 mil. Os dados são do levantamento da ONG Instituto Polis, que analisou casos da cidade de São Paulo entre 01 de março e 31 de julho. Entre as mulheres, as que têm a pele preta também morreram mais: foram a 140 mortes por 100 mil habitantes, contra 85 por 100 mil entre as brancas. Outro levantamento, desta vez pelo IBGE, mostrou que mulheres, negros e pobres são os mais afetados pela doença. A cada dez pessoas que relatam mais de um sintoma da covid-19, sete são pretas ou pardas... “
Em todo o Brasil, os dados não são muito diferentes. Foi por isso que o Olodum,que, desde sua reinvenção em 1983, está comprometido com a valorização da vida e com uma cultura de paz, como diz uma de suas músicas, “O Olodum é pela vida/ É pelo amor/ Mas que beleza...” silenciou os seus tambores em homenagem a homens e mulheres, negros e brancos que foram vitimadas pela pandemia.
O Olodum também calou os seus tambores, como forma de protesto ao negacionismo daqueles que falsamente intitulam a doença chamando-a de “gripezinha”, ou que incentivam as pessoas a irem às ruas e se aglomerarem além de propalarem criminosamente ideias tóxicas de que o uso de máscara seria ineficiente como barreira para o vírus ou prejudicial à saúde.
Afinal, vidas negras importam e todas as vidas importam. Por isso, respeitosa e silenciosamente, protestamos para que o Brasil e o mundo pudessem nos ver e nos ouvir. A imagem dos tambores silentes descansando sobre as pedras do Pelourinho rodaram o mundo e, mais uma vez, mostraram o compromisso do Deus dos Deuses Olodum com a preservação da vida.
Olorum Kossi Puré