A missão assumida pelo deputado Ricardo Barros - PP como líder do governo na Câmara, é fruto daquelas negociações do presidente Jair Bolsonaro com o Centrão, com escopo de ampliar sua base de sustentação e minimizar os inúmeros problemas de relacionamento entre o Executivo e o Congresso. Para quem não se lembra, Barros foi o relator da chamada Lei de Abuso de Autoridade que prevê, por exemplo, punições para magistrados, membros do Ministério Público e autoridades policiais no exercício de investigações contra a corrupção de poderosos.
Aprovada em regime de urgência na Câmara, a Lei foi recebida com preocupação e críticas pelas princinpais associações de juízes e procuradores brasileiros, por entenderem que o PL resultaria no enfraquecimento das autoridades dedicadas ao combate à corrupção, com grave violação à independência do Poder Judiciário e forte possibilidade de criminalização de suas funções essenciais. A Lei foi encarada também por juízes, promotores e outros especialistas, como intimidação e retaliação da classe política às investigações da força-tarefa Lava Jato e de outras operações em curso contra desvios de dinheiro público.
Não é demais lembrar que, em 2019, o deputado Ricardo Barros foi denunciado pela Procuradoria da República em ação por improbidade administrativa, durante sua gestão como ministro da Saúde de Michel Temer. O MP apontou irregularidades na compra de medicamentos destinados ao tratamento de doenças raras. Na época, como de praxe, Barros disparou nota negando tudo. Em setembro desse ano, o MP do Paraná, estado natal de Barros, cumpriu mandato de busca e apreensão em seu escritório, em Maringá, município onde já foi prefeito.
O Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do MP - Gaeco informou que a investigação envolve fraudes na contratação de energia eólica, iniciada com base em informações da Operação Lava Jato enviadas pelo STF, em novembro de 2019. Os crimes investigados de corrupção e lavagem de dinheiro ocorreram, segundo a Gaeco, entre 2011 a 2014. Em nova nota, o deputado, que está em seu sexto mandato, mais uma vez jurou inocência e reforçou a sua "conduta ilibada".
Ricardo Barros continua líder do governo na Câmara e, nos últimos dias, protagonizou um desses absurdos que ganham destaque na mídia de ponta a ponta do país. Assim, como se fora a coisa mais banal da vida, Barros quer uma nova Constituição para o Brasil. Quem sabe uma Constituição novinha em folha e, de preferência, que favoreça aos seus interesses e aos de outros mentores ocultos dessa ideia que, seguramente, não saiu de uma única cartola. Ora, das duas uma: ou Barros é mesmo um equivocado e desconhecedor da história ou, inflado por espíritos intencionais, se lançou na ofensiva de ampliar poderes do Legislativo, quiçá do Executivo, passando uma borrachinha na Carta Magna brasileira.
Porque não? Vamos ali redigir uma nova Constituição? Simples assim. Estaria o parlamentar encarregado de empoderar ainda mais esses dois poderes? Ao que parece, sim, já que as suas queixas e argumentos duvidosos recaem sobre a legítima função do Judiciário e de outros órgãos de controle e fiscalização. Para Barros, juízes, promotores e agentes públicos da CGU, Receita e Tribunal de Contas da União, "promovem danos, chantagem e intimidação" aos membros do Legislativo. Na sua visão, uma nova Constituição colocaria um "ponto final nisso".
E para tal fim, o parlamentar sugere um plebiscito nos moldes do que foi feito no Chile no último dia 25, quando o país aprovou em massa a criação de uma nova Constituição. Barros só esqueceu-se de assimilar que os chilenos estavam se livrando de uma herança maldita, autoritária, criada pela ditadura de Augusto Pinochet. Com o "SIM" ao plebiscito, o Chile fechou o ciclo de redemocratização e partiu rumo à uma nova Carta a ser elaborada por uma convenção constituinte exclusiva, com a participação de delegados eleitos pelo voto popular. Um triunfo da democracia. O Brasil encerrou esse processo lá atrás, com a convocação da Assembleia Nacional Constituinte e promulgação da Constituição de 1988, batizada de "Constituição Cidadã" justamente por ampliar liberdades civis, direitos e garantias individuais que foram reduzidos durante a ditadura militar.
A citação do Chile, portanto, é bem incabível. Enxugar, adequar, modificar, qualificar os princípios da Constituição será sempre possível, desde que haja justificativas sociais e institucionais procedentes, ou novos contextos que apontem, de fato, para a real necessidade da garantia de direitos, eficiências e equidades. Mudanças que, inclusive, poderão ser feitas através de emendas constitucionais como prevê a própria Carta em seu artigo 60, e como vem sendo feito efetivamente, sem a menor necessidade de zerar a reza. Desde que a Constituição de 1988 entrou em vigor sofreu mais de 100 modificações, provando que não é estática e pode, sim, ser melhorada ou corrigida.
O canto da sereia
Portanto, é muito estranho que num momento de pandemia, instabilidade econômica e polarização exacerbada, um parlamentar, líder do governo, lance proposta de plebiscito para saber se o povo brasileiro quer escrever uma nova Constituição. Incluindo aí nesse projeto - que ele diz estar elaborando individualmente sem outras interferências políticas -, uma Assembleia Constituinte eleita pelo povo com o encargo de escrever uma Constituição novinha, descartando desse papel os atuais deputados e senadores. Com uma conversa pra lá de esquisita, Ricardo Barros acha que a Constituição de 1988 torna o país "ingovernável".
E lança o canto da sereia nos princípios que amarram as finanças e os investimentos do Estado, com certeza para mostrar que tem outras razões questionáveis além das que lhe preocupam de fato. Só que ele deixa escapar que a Carta "tem mais direitos que deveres" e, no frigir dos ovos, chegamos ao cerne da questão: o desgosto do deputado com os órgãos de controle e fiscalização. "O poder fiscalizador ficou muito maior do que os demais", disse o parlamentar, revelando seu real sentimento durante a live promovida pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. Para Barros, o Legislativo "se sente acuado" e o "ativismo político do Judiciário" é "muito intenso".
Ora, Ricardo Barros é um crítico contumaz da operação de combate à corrupção Lava Jato e, sendo um parlamentar sob investigação, como é o seu caso, não causa espanto sentir-se "acuado". Expandir, porém, esse sentimento para um Legislativo que age e manobra livremente, aprovando matérias questionáveis como a Lei de Abuso de Autoridade, da qual o próprio Barros foi relator, além de ter desfigurado como bem lhe aprouve a chamada Lei Anticrime, o Legislativo pode até se sentir de qualquer jeito, menos "acuado". Não é a primeira vez que um político ou governo insiste em "tomar providências" contra a Constituição por se sentir ameaçado ou em risco de perder o poder. Quem já viu esse filme antes levante a mão
Exemplo recente? Sob o falso manto das "garantias de direitos sociais, políticos e econômicos", típico de quase todas as suas narrativas, o Partido dos Trabalhadores também ensaiou projetos para a convocação de uma nova Assembleia Constituinte. Em 2018, no Programa de Governo do PT para as eleições presidenciais, que tinha Fernando Haddad como candidato, lá estava a ideia escrita de forma bem bonita: " uma nova Constituição para dar conta do desafio de refundar e aprofundar a democracia do Brasil ". Esse lindo texto já não convencia mais ninguém. Anos antes, a mesma tese foi defendida por Lula que chegou, inclusive, a lamentar o fato de ter sido um dos constituintes de 1988.
Ao que parece, o deputado Ricardo Barros (e prováveis aliados), no auge do seu sexto mandato, ao invés de estar empenhado em modernizar e aperfeiçoar boas práticas constitucionais e políticas - essas sim verdadeiras garantias para o perfeito funcionamento da democracia brasileira - se mostra mais interessado em defender modelos retrógrados que nos remetem a desastrosas cenas históricas, a exemplo da 1ª Constituição do Brasil, imposta por D.Pedro I. O Dom dissolveu a Assembleia Constituinte, em 1823, fazendo valer seu próprio projeto, fortalecendo seu poder pessoal de imperados e colocando-o acima de todos os demais poderes. Ou, quem sabe, a inspiração de Barros vem lá do Estado Novo, bem a gosto da Constituição de 1937, a quarta do país, quando Getúlio Vargas, sentindo-se em risco e querendo permanecer no poder, revogou a Carta de 1934 que ele mesmo promoveu, uma das mais modernas do país. Vargas dissolveu o Congresso e impôs ao país, sem consulta prévia, a nova Carta Magna, de ares fascistas, estabelecendo o fim dos partidos políticos e concentrando todo o poder em suas mãos, o chefe supremo do Executivo. Foi-se então não apenas a liberdade partidária, mas também a liberdade de imprensa, a independência dos Poderes Legislativo e Judiciário, prisão e exílio de opositores e outros desastres mais.
Desculpa deputado Barros, mas ainda prefiro o canto inteligente e divertido do pássaro trabalhador: o joão-de-barro.