ITABUNA NÃO OUVE MAIS O CANTO DOS GALOS COMO ANTES

Walmir Rosário
06/10/2020 às 09:57
  Inegavelmente, Itabuna é hoje uma cidade cosmopolita. Mesmo antes de se emancipar, nossos conterrâneos já tinham ideias avançadas, bem diferentes do restante da população de outras cidades regionais, e isto já bem dito e passado em papel pelos mestres Adelindo Kfoury, José Dantas de Andrade e outros historiadores desta terra.

  Como um itabunense por adoção, aqui morando desde os dois anos de idade (embora sempre dou meus pulos pelo Brasil afora), ainda lembro dos imensos quintais do bairro da Conceição. Eram os tempos que ainda acordávamos com o canto do galo (despertador) ou grandes relógios de parede que badalavam a cada hora e eram artigos de muito luxo. 

  Cada um desses chefes de terreiro tinham horários certos para cantar, sem depender de horário de verão, hora de Brasília ou do meridiano de Greenwich, mas estufavam o peito e deitavam sua cantoria no tempo determinado. Nem um minuto a mais ou a menos. Volta e meia sumia um desses galináceos, apreciados devidamente cozidos ao molho pardo e, como mandava o estatuto da malandragem, com a participação do dono.

  A pontualidade britânica desses bichos era tamanha que o pessoal que servia o brioso Tiro de Guerra 126 se levantava ao som do seu galo despertador predileto. Um galo de propriedade de Rodrigo Antônio dos Santos, o Rodrigo Bocão, dublê de tipógrafo e diretor do Botafogo do bairro Conceição, era quem determinava o horário do treino do time. No máximo, cinco minutos depois do galo cantar, lá estavam os fogosos atletas para treinar no campo da Desportiva.

  Saudades à parte, a Itabuna de hoje, povoada por prédios de apartamentos que varam o azul do céu, não permite mais esse tipo de hábito. Cada um que compre seu despertador, seja o aparelho de um modelo mais chique, vendido por Benitez Solla, com garantia a perder de vista, ou nos camelôs do centro da cidade e adjacências, com procedência chinesa.

Alguns têm sons estridentes, como preferiam os estudantes de antigamente (um amigo meu tinha que colocá-lo numa lata de querosene para conseguir despertar, tamanho o sono), ou conhecidos boêmios frequentadores da noite, mas homens responsáveis que não queriam perder a hora do trabalho. Já outros preferem os sons eletrônicos, capazes de perturbar os vizinhos a mais de um quarteirão.

  Mas a Itabuna cosmopolita de hoje ainda nos permite arroubos bucólicos, principalmente na periferia, onde as casas possuem quintais generosos, com plantações de hortaliças, generosos pés de jaqueira, mangueiras, pequenas plantações de cana e, como não poderia deixar de ser, um poleiro com seus galináceos. 

  Meu amigo Roberto Abijaude, apreciador de um suculento galeto com manjericão e ervas variadas, não dispensa criação própria, com aves de raça, que foram selecionadas sob rígidos critérios zootécnicos na outrora granja da Ceplac. Na verdade, Abijaude, como todo libanês que se preza, cria seus galetos para deleite próprio.

  Como mora afastado de vizinhos, seu Roberto Abijaude está livre de problemas sonoros. A mesma sorte não teve o Dr. Jacob, comerciante do ramo de cacau, também acostumado a criar suas galinhas no quintal de casa, cevadas com generosas quantidades de milho e rações da mais variadas. Todas para o consumo dominical de sua família.

  Ao se mudar para o centro da cidade, Jacob não abriu mão de manter perto de si sua numerosa criação. Nascido e criado em fazenda, não imaginava ele os aborrecimentos que encontraria pela frente, principalmente com seus vizinhos, pessoas urbanas de pouco conhecimento da vida animal. Era gente que não conseguia distinguir uma galinha de um galo. Para eles tudo é frango, de preferência da Sadia, é claro. Quanto mais apreciar a sonoridade dessas aves.

   Não deu outra. Jacob foi chamado às falas pelo órgão judiciário competente e solicitado a desfazer sua criação. Uma a uma, as aves foram sendo sacrificadas. Quem primeiro parou de cantar foi o rei do terreiro, e a cada domingo Jacob se deliciava com uma das galinhas do seu plantel. Puto da vida, nem mesmo os amigos do Alto Beco do Fuxico foram convidados a apreciá-las.

  Nesses tempos modernos, parece que as pessoas resolveram abrir uma guerra sem quartel contra a família dos galiformes. Em Canavieiras, uma cidade ainda de médio porte, nos chega a notícia de que o galo em quintal está com os dias contados. Recentemente, uma respeitável senhora da sociedade, incomodada com a cantoria de um desses bichos madrugadores, também convocou os préstimos da Justiça para resolver tão importante questão.

  O indigitado galináceo teimava em acordar por volta das três da manhã e se punha a cantar até o dia amanhecer, tirando o sossego e a sonolência dos vizinhos. O galo é um dos grandes amigos de um marinheiro aposentado, que cansado das marolas do navio, escolheu Canavieiras para morar até o fim dos seus dias.

  Não imaginava o marujo que o sonho de descansar longe do corre-corre das cidades grandes e da tecnologia fossem causar tanta indignação. Além da sonoridade do ilustre galináceo, a respeitável senhora ainda está contra uma invenção de séculos atrás: o fogão de lenha, que além de desatualizado, é politicamente incorreto por ajudar a destruir o meio ambiente. E o pior, segundo a senhora, porque perturbava os vizinhos espalhando fumaça alérgica.

Não tenho nada contra a onda de modernidade que assola o planeta, mas não pretendo comer frango de granja pelo resto da vida, muito menos comer uma galinha a molho pardo cozida num forno de micro-ondas. Teimoso que sou, continuo preferindo acordar com o intrépido cantar de um galo, ao ruído impertinente de relógio despertador digital. E no mais, tenho dito!