O Alquimista de Berlinque

Nelson Cadena
28/05/2017 às 12:57
Se eu tivesse matado alguém não estaria aqui contando esta história. Um dia encarnei Melquiades, o cigano de Macondo, e imergido nos livros estudei por meses todas as propriedades medicinais das plantas, fazia sentido dentro de minha expectativa de reinventar a vida em consonância com a natureza. Preenchi um par de cadernos com anotações, ainda os guardo comigo, sem coragem de jogar fora; sei que antes de desencarnar tenho que me desfazer dos muitos cadernos de adolescência, psicodélicos-errantes. Já decidi.

Reinventei a vida coisa nenhuma, mas, a partir dessa minha “sabedoria” de alquimista delirante inventei uma centena de infusões de cachaça com ervas, misturas cuidadosamente estudadas, sabia que losna com arruda poderia mandar o cidadão para Eritreia, conjeturas minhas, no contexto da literatura assimilada. Não me atrevi a fazer a mistura diabólica, mas, fiz outras piores, uma delas que denominei Hiroshima 78 (por que será?), causava-me taquicardias episódicas. Sem beber uma gota, só de apreciar.

Meu coração disparava e uma baralhada de sudoração e calafrios tomavam conta de mim cada vez que no meu barzinho de beira de estrada em Berlinque, Ilha de Itaparica, servia uma dose da dita cuja. Encarava o freguês já o advertindo de que duas doses de “Hiroshima 78” era o limite permitido. Na minha imaginação a terceira seria queda na certa. Elaborei regras severas para conter os danos. Na minha saga Melquiadesca pari a infusão que denominei, “Insânia”, aos íntimos confessava o nome verdadeiro “absinto de pobre”, uma mistura de losna com pau de resposta; também o seu consumo limitado que não sou besta.

O fato é que não matei ninguém com minhas infusões de ervas e estão aí bem vivos para testemunhar a meu favor Tasso Franco, Gorgônio Loureiro, Mario Suárez, Zé Fernandez, Roberto Gaguinho, Antônio Jorge, Coelinho, e outros tantos que não vou aqui revelar, como não vou revelar o teor das misturas que não quero perder a amizade. Certa noite, eu em plena vigília, controlando de perto o êxtase alcoólico dos meus clientes mais afoitos, eis que estaciona na minha porta uma viatura, o delegado de Mar Grande_ já o conhecia_ muito sisudo, foi direto ao assunto:

“Recebemos uma denúncia de que o jovem anda preparando infusões de maconha”. E foi adentrando no casebre sem pedir licença, cheirando uma por uma as garrafas de infusão e já exasperado, não identificando olências de cannabis, baixou o tom e perguntou: ”o que é isso mesmo? Só o senhor experimentando. Servi logo uma dose de infusão de milome, reforcei com uma de Jatobá com cambuí, estendi a degustação aos soldados que o acompanhavam; tomei coragem e servi o “ângelus”, uma mistura de angico com Ipê roxo e fedegoso, alguns de meus fregueses trocavam Jesus por Genésio, logo na primeira dose.

Homem forte, o delegado não caiu de primeira. Estava em pé na segunda. Na terceira continuava firme na degustação. O resto me contaram, que fui verificar a agua no fogo, se já fervia para cozinhar os caranguejos. Segundo a lenda o delegado mamou mais uma que escolheu ao esmo e nada mais disse, nem deu boa noite, mas, distribuiu um sorriso de orelha a orelha e lá se foi cantarolando alguma coisa que as minhas fontes identificaram como Lupicínio. Restou-me imaginar que fosse: “A minha casa fica lá de traz do mundo/Onde eu vou em um segundo quando começo a cantar/O pensamento parece uma coisa à toa/Mas como é que a gente voa quando começo a pensar”.