Existem episódios que de tão aterradores, nos fazem pôr em dúvida a humanidade de alguns e nos impulsionam a querer de algum modo agir, corrigir, impedir que aconteçam ou mesmo que se repitam. Ainda que não saibamos exatamente como agir para isso.
Em 18 de maio de 1973, há 44 anos, portanto, um crime abominável causou comoção nacional. E por seu desfecho igualmente absurdo acabou tornando-se um símbolo de toda a violência que se comete contra as crianças.
Com apenas oito anos de idade, Araceli Cabrera Sanches foi sequestrada, drogada, espancada, estuprada e morta por membros de uma tradicional família da elite capixaba. Apesar de toda notoriedade e de toda a repercussão na mídia, os acusados foram absolvidos pela justiça local e o processo arquivado. Mesmo em face do trágico aparecimento do corpo da menina, desfigurado por ácido, em uma movimentada rua da cidade de Vitória (ES), a impunidade dos criminosos prevaleceu no episódio.
O dia 18 de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, surgiu assim no ano de 1998, quando cerca de 80 entidades públicas e privadas reuniram-se na Bahia para um encontro nacional, organizado pelo Centro de Defesa de Crianças e Adolescentes (Cedeca/BA).
Mais tarde, a então deputada federal Rita Camata (PMDB/ES) - presidente da Frente Parlamentar pela Criança e Adolescente do Congresso Nacional, apresentou um projeto de lei que foi sancionado em maio de 2000, instituindo oficialmente a data.
Essa história de lutas teve no último dia 18 mais um capítulo quando, como parte das ações envolvendo a data, foi realizada uma sessão no Centro de Cultura da Câmara Municipal de Salvador contando com a presença de representantes do Poder Judiciário, da Secretaria de Justiça Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SJDHDS), da Secretaria Municipal de Promoção Social e Combate à Pobreza (SEMPS), do Conselho Tutelar, além dos titulares da Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude, Cedeca e Derca.
Foi revigorante perceber o engajamento e a paixão que os presentes nutriam pela causa, claramente demonstrado ao exporem suas ações e externar a consciência de que somos todos responsáveis e de que crimes como esses sejam tão comuns (a Bahia é o quinto estado com mais notificações) e haja envolvido ainda um perverso ingrediente que é o fato de a esmagadora maioria dos casos ser cometida por pessoas conhecidas e próximas à criança, sejam pais, padrastos, irmãos, tios, primos, avós, vizinhos.
Contudo, apesar do altruísmo demonstrado, para o ouvinte mais atento talvez tenha surgido uma estranha percepção ou questionamento angustiante. De que, a despeito de todo o esforço que está sendo realizado, ainda carecemos de integração entre os atores envolvidos e de suas ações.
É bem verdade que vivemos um momento de polarização política, claramente visto nas relações entre governo estadual e municipal, que beira o antagonismo. Entretanto, governos passam, mas a sociedade e suas demandas permanentes ficam. Temos uma causa que em muito extrapola simples divisões e interesses casuísticos, pois os crimes contra a infância deixam marcas indeléveis por toda vida e adoecem o tecido social.
Chegou a hora de cobrarmos maior maturidade política e buscarmos uma integração de atuação. Muito já é feito, mas muito mais ainda pode ser e modestamente entendo que a integração dos órgãos, dos agentes públicos, privados e da sociedade dará prova inequívoca de respeito ao povo, às crianças e à memória de Araceli.
Por uma Rede Integrada de Combate a Violência Sexual contra a Criança e o Adolescente.