Tasso Franco
23/08/2016 às 12:11
Um dos debates mais prolongados da literatura brasileira está na definição do "homem cordial" do livro Raizes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, agora ao completar 80 anos de existência do seu primeiro lançamento, em 1936, com nova edição crítica da Companhia das Letras. E nós colocamos esse 'gancho' aqui para situá-lo no contexto dos Jogos Olimpícos do Rio 2016, se a torcida brasis se comportou de forma cordial.
No próprio livro e nas inúmeras edições o conceito do 'homem cordial' ou a postura do homem brasileiro visto pelo autor como cordial, hospitaleiro, amigueiro, na Olimpíada teria sofrido um baque diante da atuação da torcida, implacável, apontada até como mal-educada, de traços nazistas, e que levou o francês Renaud Lavillenie às lágrimas no pódio do salto com vara, mesmo ganhando a medalha de prata, revelado que de cordialidade o brasileiro não tem nada.
Há, no entanto, uma 'verdade coletiva' no Brasil de que somos cordiais, bons de samba, de capoeira, de Carnaval, de hospitalidade, de cordialidade. Isso parece consensual entre nós. Aqui na Bahia, as autoridades do turismo, por exemplo, nos vende ao mundo com essa imagem da cordialidade, do baiano que sabe receber, que é um camarada legal, mesmo com todas as malandragens existentes por acá e dos altos níveis de violência.
E, no final dos jogos olímpicos, na despedida, no show de samba no Maracanã emergiu esse 'homem cordial' que se apresentara hostil nas aquibancadas contra os adversários brasis, nocauteado o chamado 'espírito olímpico' ou 'espírito esportivo'. No Maracanã nos apresentamos cordiais, ao extremo.
Vimos, também, no final da cerimônia duas posturas e identidades culturais diferenciadas entre o comportamento e os gestos do prefeito do Rio, anfitrião da festa, e da governadora de Tóquio, que vai sediar os jogos em 2020. Eduardo Paes um 'cordial' ao estilo Brasil - samba, beijinhos e chapéu Panamá - e a senhora Yuriho Koibe, com a 'cordialidade' a la japonês.
Não há uma resposta definitiva sobre o 'homem cordial' brasileiro, nem o posto no livro Raizes do Brasil, escrito numa época para discutir o pensamento dentro de suas necessidades, anos 1930, na era Vargas, a evolução desse homem e do país ao longo das décadas, saindo de um contexto rural para urbano, mas, guardando, ainda, todo um ranço que vem do coronelismo e do autiritarismo da República Velha.
Teríamos agiado assim ao levar o francês campeão às lágrimas deixando-o magoado, abatido e só querendo voltar o mais rápido para sua casa, para refletir a alongar seu pensamento e expor o Brasil a essas consequências?
Ou foi o instinto da 'cordialidade' brutal brasileira que é capaz de massacrar seus adversários na quadra, nos campos, nas pistas, com gritos e vaias, sem a mínima 'cordialidade'; e ao mesmo tempo chamar todos a dançar, a sambar, a confraternizar como se viu no final da festa no Maracanã?
Que dualidade, que debate.
Tema de discussão interminável e que coloca o Raizes do Brasil no centro da polêmica.