Fernando Conceição
13/08/2016 às 20:03
QUANDO DECIDI de São Paulo, onde vivia razoavelmente bem intelectual e financeiramente, obrigado, reinstalar-me em Salvador, tive a ideia de criar um jornal alternativo.
Não apenas como fonte de sobrevivência, louco que era ao assim pensar. Mas – e principalmente – para contribuir com o debate político-cultural da cidade.
Para não perder a viagem nem o bom humor, uma das características do projeto editorial mas também uma escolha de vida, resolvi chamar o jornal de Província da Bahia.
Ter “província” no nome já dizia o que pensava e ainda penso sobre esse pedaço de terra onde, para gáudio e miséria, nascemos. E, por pura opção masoquista, vivemos.
Conceitualmente no Brasil, província remete ao atraso, à era colonial-escravista vigente até o golpe da República em 1889. Que persiste culturalmente na mentalidade baiana.
Entrei em contato com a jornalista Marlene Lopes, amiga de priscas eras, para tê-la como parceira no empreendimento. Negra e irriquieta, à época Marlene, hoje radicada em Luanda como assessora em primeiro grau de José Eduardo dos Santos, que desde 1991 governa autocraticamente Angola, já era uma profissional de competência comprovada.
Por pura amizade, me auxiliara um pouco antes na escolha de duas bolsistas de jornalismo, que paguei do próprio bolso por meses a fio, para a pesquisa de mestrado que fiz na Universidade de São Paulo.
Uma delas é hoje diretora da Faculdade de Comunicação onde dou aulas. A outra, mais sábia, largou a escola e foi fazer Medicina.
De Sampa agendei uma reunião preliminar que, se não me falha a memória, Marlene marcou para o apartamento de outro jornalista de boa cepa, Ronaldo Braga, então redator de A Tarde.
Nos reunimos os três e mais alguns curiosos que ela levou para ouvir meus planos. Parece que não consegui ser convincente. Acharam a ideia boa, mas investir no negócio do próprio bolso não dava entusiasmo a ninguém. Creio que suspeitaram dos propósitos da minha honestidade, depois de estar fora da cidade fazia já seis anos.
Ocorre que a desconfiança dos meus colegas jornalistas não iria me demover, ainda que sem capital. Voltei a São Paulo para arrumar as malas. E assim que fixei novamente morada em Salvador, outubro de 1996, recebi um inesperado telefonema de alguém que se identificava como superintendente da Fundação José Silveira, que administra hospitais, centros de saúde e outras atividades filantrópico-comunitárias no Estado da Bahia.
Antônio Brito, atualmente deputado federal em terceiro mandato, filho do ex-prefeito “tampão” Edvaldo Brito, queria almoçar comigo.
Marcamos no restaurante do Teatro Castro Alves (TCA). Durante o almoço, lá pelas tantas, de supetão, ele me fez uma proposta de trabalho free-lance.
Queria me contratar para produzir o livro comemorativo dos 50 anos de criação do IBIT – Instituto Brasileiro para a Investigação da Tuberculose, obra pioneira do médico José Silveira(1904-2001) que deu origem a tudo aquilo em que se tornou a fundação que leva o seu nome.
A oferta era financeiramente tentadora e eu até poderia ter pedido mais. Tinha total liberdade de ação e foi-me oferecida uma equipe auxiliar dentro da própria FJS para questões de acesso a arquivos e à burocracia.
Com o dinheiro que me pagou, 50% adiantados, resolvi investir tudo no jornal alternativo. Dessa forma, na segunda semana de novembro o primeiro número da Província da Bahia era lançado em evento bastante concorrido.
COM O TRIPÉ EDITORIAL cultura-política-humor, aquele primeiro número já dizia a que vinha. A capa estampava uma fotografia em superclose da então prefeita da capital, Lídice da Mata, hoje senadora da base aliada petista.
Ela acabara de ser derrotada nas urnas para Antônio Imbassahy, também agora deputado federal, líder do impeachment de Dilma Rousseff. Era o candidato do todo-poderoso oligarca Antônio Carlos Magalhães.
Lídice nos concedera uma entrevista exclusiva. Título: “Mais uma desempregada em Salvador”.
Fazer a entrevista foi uma peripécia. Basta dizer que eu e o fotógrafo fomos levados muito depois do expediente ao apartamento no qual ela morava nos arredores do Nordeste de Amaralina, de lá saindo depois de uma hora da madrugada.
Distribuídos gratuitamente pela cidade, em periodicidade quinzenal (no início), mensal (depois) ou quando conseguíamos alguma grana para pagar os custos de impressão e distribuição, os 5 mil a 10 mil exemplares da Província eram disputadíssimos. Serviam até mesmo para embrulhar peixes, como brincávamos.
Logo uma plêiade de colaboradores, grande parte estudantes de jornalismo das faculdades existentes na capital, aderiu entusiástica e sem nada receber na feitura, a partir do zero, do jornal. Que oxigenou o debate sobre conteúdo, sobre ideias e sobre a forma de produzir editorialmente um veículo de imprensa alternativa.
Escreveram em colunas fixas o teatrólogo Marcio Meirelles, o crítico de cinema André Setaro, o gourmet Dimitri Ganzelevitch. Foi pioneiro em ter uma coluna “gay”, que chamei de Arco-Íris, entregue a um antigo desafeto de polêmicas sobre a homossexualidade de Zumbi do Palmares, líder do GGB, Luiz Mott.
Mott depois, ele mesmo,resolveu espinafrar o jornal e processar uma outra colaboradora, abrindo mão do espaço. Então entregue a Maurício Tavares, professor da Facom, que aí permaneceu até que extingui a aventura, com déficit, em 2005.
Formávamos uma patota, com gente de sangue novo e entusiasta. Nos divertíamos às pampas, porque fazer aquela loucura toda era prazeroso. Gostoso e inédito.
Maristela Sampaio, Ana Rosa Marques, Marcos Rodrigues, Gilson Jorge, Claudio Leal, Rita Cliff, Luciano Aguiar, Tattiany Carvalho, Camila “Japa” Jasmin, Thiago Marinho, Pablo Reis, Tatiana, Vítor Rocha, Vítor Pamplona e tantos outros.
Já ia esquecendo de Adriana Jacob, parceira até mesmo de festas de arrecadação de fundos para o jornal, à frente o “DJ Big Dick”, anunciado na programação do vestuto A Tarde. Muitos arregaçaram as mangas para tocar o jornal.
Às vezes o único anunciante que possibilitava a circulação era a Instalofone, de Luís Reina, empresário então bem-sucedido. Que propôs, até, comprar todo o jornal – o que não se deu porque nós, os jornalistas e aspirantes, não quisemos abrir mão do controle editorial.
Contudo era uma farra para todos nós, ocasionalmente pelas madrugadas de botecos, viver a experiência do jornalismo pluralista e alternativo. Ainda que a dureza fizesse alguns passar noites indormidas, tanta era a ansiedade de pegar o jornal impresso nas mãos.
A Província tornou-se respeitada e produziu grandes entrevistas (eixo das edições), com anônimos e famosos – artistas, políticos, empresários, presidiários, prostitutas, ex-viciados. Recebeu ajuda para cobertura dos custos de gente daqui e d´alhures. Inclusive dos próprios colaboradores estudantes, que até rifa fizeram para pagar as edições.
Famosos também eram os eventos de lançamento de um novo número do jornal. Sempre feitos em parceria com donos de bares e restaurantes – da Acarajé de Regina ou Dinha do Acarajé, ao Postudo, Extudo, Quintal do Raso da Catarina, Buteco do França ao Bistrô PortoSol do cervejeiro austro-húngaro Reinhard Lackinger e esposa.
Pautas criativas, inusitadas, reportagens investigativas e polêmicas deram bons frutos ao jornalismo praticado na Província, cuja sede era o endereço do editor na favela do Calabar. Local das reuniões de pauta e festas – frequentado por gente como o hoje afamado ator Wagner Moura, que fez jornalismo na Facom.
Isso fez com que, na disputa com grandes veículos da mídia tradicional, por duas ocasições a Provincia tenha se destacado em premiações de melhores reportagens do ano.
Seu slogan – “Quem não é o maior, tem de ser o melhor” – exigia apuro. O que nos levou a faturar o prêmio Banco do Brasil de Jornalismo em 2001, ao lado de A Tarde, e o primeiro lugar no prêmio de Jornalismo Ambiental do Cofic, ao lado da TV Bahia, em 2003. A grana serviu para abater parte de dívidas acumuladas.
A irreverência da linha editorial fez com que, por outro lado, acumulássemos antipatias desse ou daquele personagens fustigados pela autonomia crítica que, para nós, era a única moeda que valia.
Recém-empossado prefeito, Imbassahy interrompeu a entrevista coletiva quando lhe indagamos se seu único plano para acabar o desemprego em Salvador era construir “fábricas de Carnaval”. Como novo xerife da capital, levantou-se da mesa e deu as costas bufando.