O CANTO DE BOB MARLEY NA CIDADE NEGRA DO SALVADOR

ZédejesusBarrêto
12/05/2011 às 15:28

Foto: Burk Art
Bor Marley e sua relação com a cidade do Salvador e sua gente
   Rolava o ano de 1978 quando ouvi pela primeira vez aquele som diferente, aquela voz negra rouquenha que parecia arrancada do mais fundo das entranhas, um ritmo latejante, o fraseado em inglês que pouco me interessava o significado, aquela guitarra baixo pulsando como o coração no peito, feito o vaivém do mar, o respirar da vida ... Tomado por aquela sonoridade, desviei-me de tudo e parti em direção àquele canto encantado, que vinha de uma loja, ali bem perto.

  Era a mesma sensação que já sentira quando ainda menino ouvi Luis Gonzaga, mais tarde adolescente ouvi pela primeira vez Beatles, João Gilberto, depois Bethânia cantando ‘É de manhã!' e, mais tarde, Caetano pregando ‘Alegria Alegria'... São instantes na vida em que sentimentos afloram sem controle a partir dos ouvidos e a alma se enche de uma agonia feliz, inesquecível, e temos a certeza de que jamais seremos os mesmos depois de escutar aquilo.

  Era Bob Marley executado em disco, o LP ‘Kaya' girando na vitrola da lojinha da esquina da rua d'Ajuda, quase defronte da antiga livraria Civilização Brasileira. A canção primeira que ouvi de Bob, um dos gênios da música do século XX, naquele dia, foi ‘Time Will Tell' e a ‘fender bass guitar' que me tirava o fôlego era executada por Aston ‘Family man' Barret, da banda The Wailers, a cozinha do astro (cantor e compositor) jamaicano. ‘Kaya' me arrepiou, então, e guardo esse vinil comprado no ato como relíquia.

  Naquele tempo - Deus meu, parece uma era bíblica -, trabalhava como repórter na sucursal do jornal Estado de São Paulo, uma redação com sete jornalistas, situada no prédio alto da rua estreita que liga a rua Chile a Ajuda, centro e agito da cidade, onde tudo acontecia, então.

   Livrarias, lojas, farmácias, cafés, bares, restaurantes, o Adamastor, os hotéis Chile e Pálace, a Sloper ditando modas, a loja Duas Américas cheia feito um shopping , o frenesi e as fofocas da política na Praça Municipal, o terminal de ônibus na Praça da Sé, anos em que os trios elétricos ainda desciam a Rua Chile e paravam na Praça Castro Alves no Carnaval e os blocos afros com seus tambores eram a grande novidade cultural da cidade negra.

  Um ano depois o reggae de Bob apontava caminhos novos: Gilberto Gil gravando o sucesso ‘No Woman, No Cry' , a ditadura militar se esvaindo, as cores e o fumo da Jamaica, Caribe-África fazendo cabeças em nome de Jah, gorros e atitudes, Pelô, Calabar e Curuzu dançando Jimmy Cliff, Peter Tosch, Alpha Blondy, Muzenza, Olodum, Malê, Ilê, Badauê... A sonoridade urbana jamais seria a mesma.

  Em 1981, quando Bob Marley morreu, negros e brancos choraram e fumaram juntos repassando as letras, a poesia de suas canções, cujas mensagens de paz e igualdade entre os homens nos tocavam a todos, embora minha alma libertária sempre se opusesse ao culto rastafariano direcionado ao ditador Hailê Sellassiê. Nada é perfeito, afinal.

  Os americanos espalharam que, ao morrer de câncer no cérebro num hospital dos EUA, os médicos teriam encontrado mais de treze espécies diferentes de piolhos aninhados nos ‘dread' de Bob. Vi muito branco rindo. Como se piolhos pudessem macular o ser humano, o artista , a lenda... Coço a cabeça em lêndeas.

  Trinta anos depois, o CD ‘Catch A Fire' (guardo o vinil de 1978) a tocar no carro, revejo aquelas mesmas ruas do centro da cidade amada, maltratada, agora abandonadas. Ouço ‘Stir it Up', uma das canções mais belas do repertório de Bob, emociono-me com o contraponto sonoro de Peter Machintosh nos teclados, entristecido com o que vejo em volta: a rua d'Ajuda virou um deserto fedorento, dá medo; a rua Chile está às moscas, o Adamastor fechado, lojas e hotéis de um lado e outro, da rua do Pau da Bandeira até a Praça Castro Alves de portas arreadas, os passeios esburacados e imundos, molambos humanos arrastando-se em direção ao nada, sacis. O grito de liberdade e de respeito ao homem de Bob Marley está vivo, mais que oportuno.

  Calado e só, choro pela minha cidade, Mãe Preta!