LEMBRANÇAS DA ÉPOCA ESTUDANTIL DO AI-5

Antonio Jorge Moura
09/01/2009 às 22:02

Foto: Foto: Arquivo
1968: ano de forte represssão contra estudantes no Brasil
 Dando seguimento ao artigo que escrevi sobre o clima na Bahia antes e imediatamente após a edição do AI5, tenho pouca lembrança dos acontecimentos políticos oficiais no estado entre 1968 e 1973.
 
  Recordo da passeata em que a saída foi marcada para a porta da Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus e lá encontrei preparado para a "guerra" o meu irmão, o médico Laert Moura, ex-seminarista dos tempos em que o jornalista Zédejesus Barreto também estudava para padre.

  Ambos - e também o professor Elói Barreto, da Universidade Estadual de Feira de Santana, irmão de ZéBarreto - foram internos no Seminário Central da Arquidiocese, construção de arcadas que hoje abriga o "campus" da UCSAL na Avenida Cardeal da Silva.

  Na época, a Cardeal era caminho com mata de um lado e de outro, totalmente de barro, desabitada e não passava ônibus. O campo de futebol onde "Jeguinho" e o irmão "Jegão" - apelidos que ZéBarreto e Elói tinham entre os próprios seminaristas (provavelmente porque jogavam ao estilo Apaná Suvela, o lateral do Campeonato Baiano que jogava com uma capa de pneu na canela, em plena Fonte Nova) - hoje é estacionamento para carros dos alunos e professores da universidade.
 
  O último ponto era perto do Alto do Gantois, junto à Faculdade de Arquitetura, e se chegava ao seminário andando. Não tinha sequer o viaduto da Garibaldi. Tinha o arco de pedra construído para passagem do bonde, o Segundo Arco, como era chamado. O Primeiro Arco ficava no viaduto da Cardeal perto do Rio Vermelho, praticamente ponto final do bonde, porque dalí para frente não tinha nem a Pituba. E Itapuã era uma vila de pescadores onde se chegava andando pelas dunas. Levava o dia todo!

   Após a edição do AI5 eu fiquei dedicado à conclusão do curso colegial, antigo segundo grau, no Colégio Estadual da Bahia, e ao pré-vestibular. Mas o clima era feroz, de ditadura braba, sobretudo após a violenta repressão entre 1968 e 1969 ao Movimento Estudantil, que era o único movimento legal de combate à ditadura militar daquela época.
 
   Os demais movimentos políticos eram clandestinos e o MDB, cuja estrela era o combativo ex-deputado Francisco Pinto, estava dando seus primeiros passos oposicionistas. O clima era tão terrível que certa vez minha turma do Central tinha uma aula prática de Química e a professora demorou a chegar à sala. O pessoal lá esperando e ela finalmente chegou. Indisposta para lecionar naquela hora, perto do meio-dia, e perguntou se nós tínhamos levado a apostila. Só que ela não havia nos falado de nenhuma apostila nas aulas anteriores.

   Como respondemos não, ela retrucou que, sem apostila, não daria aula. Fomos saindo, descendo a escada do pavilhão onde ficava o laboratório, quando um colega reagiu em voz alta: "quando a gente chama essa droga de ditadura, nos chamam de subversivos". A professora parou, encarou a turma descendo na escada e fixou o olhar em mim.

   Dois dias depois fui chamado à Diretoria da escola e questionado pelo professor encarregado da disciplina. Era um sujeito alto, magro, louro, tipo ariano nazista e com fama de ser da Polícia Federal. Perguntou se eu chamei o governo de regime militar. Disse que não e ele me mandou voltar à sala de aula. No dia seguinte, fui novamente chamado e reinquirido. Diante de minha negativa, ameaçou: "tem a professora de prova e você vai ser expulso do colégio".
 
   Voltei arrasado para sala e após uma aula de português conversei com o colega que havia protestado. Ele era filho do então prefeito de Nazaré das Farinhas e me autorizou a dizer que tinha sido ele mesmo. Era importante essa autorização porque dedo-duro naquela época era pior que bandido. Assim me livrei de ser expulso do Central.

   O clima não era nada bom. Colegas como Antonio Risério, Gustavo Falcon e outros haviam sido presos pelas Forças Armadas como integrantes do MOL - Movimento de Organização Libertadora, que dias antes havia pichado o muro do Central. Até os comícios relâmpagos de Chico Pinto eram reprimidos.

   Naquele início dos anos 70 uma chuva braba desabrigou centenas de famílias, que forram abrigadas temporariamente na Escola Prazeres Calmom, na Fazenda Grande do Retiro, e nos galpões da ferrovia Leste Brasileiro na Baixa do Fiscal. Fizemos campanha para arrecadar donativos e nossa movimentação solidária foi acompanhada de perto por agentes da polícia política infiltrados na escola.

   As notícias que nos chegavam eram de assaltos políticos a banco, de guerrilha rural do Araguaia, do capitão Lamarca desertando e fugindo com fuzis do Exército, e de opositores do regime sendo presos e torturados. Uma estudante de Enfermagem da UFBA me procurou e pediu para executar uma "tarefa". Teria que pegar de cinco a dez cartas, todas já envelopadas e seladas, e ir colocá-las ao caixa coletora dos Correios. Só que não poderia colocá-las todas de vez para não atrair a atenção de agentes da polícia política.
 
  Tinha que colocar de uma em uma, em dias alternados, em agências diferentes e se fosse preso dizer que tinha recebido na porta de casa com um bilhete dizendo que era para endereçar as correspondências, que não sabia qual era o conteúdo. Quando me entregou as cartas seladas, ela me deu também o "bilhete". E revelou qual era o conteúdo das cartas: era cópia do Manifesto da Guerrilha do Araguaia aos Parlamentares", dando notícia de que, no sul do Pará, estava em curso um combate guerrilheiro, fato que até hoje rola.

  Cumpri fielmente a "tarefa" e só fui reencontar a estudante de Enfermagem anos depois, no corredor da Faculdade de Economia da UFBA. Fui cumprimentá-la e, como era praxe na época do AI5, ela fez de conta que não me conhecida. Foi a última vez que a vi. A história da guerrilha só conheci em um livro editado nos anos 80, que o jornalista Rogaciano Medeiros me tomou emprestado e nunca me devolveu. Estou esperando meu livro, até hoje.