Humanizou-se negro, magro, alto, de carapinha encanecida,
barba e bigode ralos e riso branco iluminado.
Um sereno e elegante setentão,
cidadão urbano comum anônimo metido em calças largas claras,
paletó cinza surrado sobre uma camisa branca de colarinho aberto
e punhos expostos de beiras puídas.
Pés grandes cadarçados em sapatos batidos
e dedos das mãos compridos e ágeis, enfeitados por dois anéis,
uma espécie de aliança larga em prata e outro com uma pedra azul
celeste e reluzente.
Tive a certeza de sua divindade pelo som de seu sopro
no saxofone dourado que descia sinuoso e imponente até as braguilhas,
boca ao tempo ampliando, ecoando delicadeza pura, encantamento.
Encontrei o negro Deus blues numa noite de outono amena,
neblinada e sem lua,
só,
encostado na parede entre a porta e a janela de uma casa simples e descascada de uma ruela mal iluminada e bela de Nova Orleans.
Fui atraído pela magia dos seus acordes, louvores à existência.
Parei diante d'Ele, madrugada deserta, quis quedar-me de joelhos,
súdito; Ele percebeu, arregalou-me os olhos,
tirou por uns segundos a palheta dos lábios e riu majestoso
para mim, em êxtase.
Daí, cerrou as pálpebras e prosseguiu
bordando em pétalas a trilha de tons, cores e odores celestiais,
uma viagem ao infinito dos tempos, além do Universo.
Alumiado.
O som do sax de Deus é chama do espírito,
só com a alma é possível ouvi-lo.
Não sei se adormeci ou onde fui parar,
pongado numa nuvem branca tangida pelo sopro divino.
Faz tempo que vi e ouvi Deus, tão perto.
Desde então, para sentir-me pleno
basta a lembrança daquela noite, aquela melodia que,
a despeito de seus acordes tão nítidos, simples, magníficos ...
não consigo reproduzi-la.
Fecho os olhos, ouço-a. Sinto o cheiro daquela madrugada.
O negro Deus flutua entre a neblina encantado pelos acordes.
A saudade daquele encontro me basta, me redime.
Nunca soube o nome de Deus.
Presumo que Ele assume todos os nomes.
Ele é o Verbo.
Ou tão somente se manifesta assim,
em forma de sons.
É Música.