O NATAL DE DOM CAPPIO

Frei Beto
23/12/2007 às 19:01
Natal de Dom Cappio


Lá está o bispo, dom Luiz  Flávio Cappio, no sertão da Bahia, decidido em sua greve de fome contra a  transposição do Rio São Francisco.
 

 O rio, que corta o coração do  Brasil, leva o nome do santo padroeiro da ecologia, devido ao seu amor. A natureza, com a qual mantinha relação de alteridade e empatia: Irmão Sol, Irmão Lua.


  O que poucos notam é que o mentor de dom Cappio era, no  século XIII, um crítico radical dos primórdios do capitalismo. O feudalismo  rural e os burgos, as futuras cidades, despontavam sob as luzes  da redescoberta de Aristóteles e os novos empreendimentos mercantis.
 

 Bernardone, pai de Francisco, rico proprietário de manufatura de  tecidos, importava da Françaa as tinturas para colorir seu produto. Sua  admiração pela metrópole levou-o a batizar o filho em homenagem a França -  Francesco.

 A miséria, até então, campeava na Europa em  decorrência de guerras e da peste. O mercantilismo gerou, pela primeira vez,  relações de trabalho promotoras de exclusão social. Francisco solidarizou-se  com as vítimas da nascente manufatura. Ao despir-se na praça de Assis, todos  entenderam o gesto para além de simples ato de despojamento.

  As roupas  produzidas pelo pai estavam conspurcadas pela tecnologia que condenava  artesãos. A perda de seu ofício e, portanto, a miséria.

 Hoje, o  franciscano dom Cappio se posiciona ao lado das vítimas da transposição das  águas do São Francisco. O PT, historicamente, era contrário ao projeto. E  também contra a CPMF. Uma vez governo, mudou, como aliás mudou em tantas  outras coisas. Mudou para não efetivar as mudanças prometidas, como a agrária.  Mudou para se desfigurar como partido dos pobres e da ética. Mudou para ficar  mais parecido com seus adversários políticos.

 Em Sobradinho (BA),  na capela consagrada ao santo que dá nome ao rio, o bispo faz seu gesto  solitário, embora alvo, no Brasil e no exterior, de muitos apoios solidários.  Sua primeira greve de fome, por 11 dias, foi em 2005. Dom Cappio recusou  alimentos até que o governo prometesse rediscutir o projeto e promover a  revitalização do rio.

  Segundo o bispo, o Planalto não honrou o  compromisso.


  A obra de transposição está orçada em R$ 5 bilhões.  Cornucópia na qual estão de olho as grandes empreiteiras e o agronegócio. Dom  Cappio desconfia de que a transposição beneficiará, não os pobres da região,  que vivem da pesca e do cultivo familiar, e sim o grande capital.


  Quem  já viu governo fazer obra de vulto para beneficiar pobre? Nem sequer o governo  Lula investiu suficientemente no programa de construção de 1 milhão de  cisternas de captação de água da chuva, que poria fim as agruras da seca no  semi-árido. Apenas 25% das cisternas foram construídas, assim mesmo graças ao  apoio da iniciativa privada. Cidades sem suficiente saneamento s?o  beneficiadas por viadutos para o conforto de quem transita em  carros...


 Quem terá acesso a água transposta? A seca ou a cerca?  Não faz sentido esse projeto numa região em que ainda predomina o latifúndio e  cuja populaçã, cerca de 12 milhões pessoas, não tem acesso a propriedade da  terra. No projeto não são incluídas as 34 comunidades indígenas e os 153  quilombolas encontrados em sua área de alcance.


O próprio  organismo que responde pelas bacias hidrográficas, o Comitê da Bacia  Hidrográfica do Rio São Francisco, está contra o projeto, que ignora as  estruturas sociais arcaicas da região - o que significa, na prática,  fortalecê-las.
 

 O que dom Cappio reivindica? 

 Simples e  democrático: que o governo debata o projeto com a sociedade, sobretudo com os  ribeirinhos do São Francisco. A obra terá profundo impacto em toda a extensão  territorial do país e, sobretudo, reflexos ambientais e sociais. 


 Dom Cappio tem fome de justiça, uma bem-aventurança, segundo  Jesus no Sermão da Montanha. Seu Natal, onde a  família de Maria e José, sem-teto e sem-terra, faz nascer a esperança de que a  população da bacia do São Francisco não venha, em futuro próximo, ser  conhecida também como sem-rio.