O ASSASSINATO DE SANDRA GOMIDE

Aparecida Torneros
07/12/2007 às 15:07
Quero falar sobre a liberdade de ser e de pensar, de ser dona do próprio corpo e das próprias decisões. Quero refletir sobre o direito de ir, vir, entrar, sair, voar, que todos os seres devem ter. Mas quero também observar sobre as notícias que falam das ações da justiça brasileira.
 
Quando um homem mata uma mulher porque ela o deixou, ou o traiu, ou o esqueceu, salta aos nossos olhos não só a violência doméstica, o estado doentio e esfacelado de uma relação "dita de amor e paixão", mas a sociedade que cultiva esses valores e os perpassa, a partir de uma utopia, que reflete costumes sexuais, amorosos e sobretudo, o conceito do capitalismo.

Quando um homem mata uma mulher porque a considera objeto seu, ou sob o seu comando, é como se destruísse um bem que não deve ser usufruído por outrem. Conceito de posse. Atitude bem materialista, com bases capitalistas. Ato imperdoável pela sociedade.
  Sim, pode parecer estranho, mas desde que li Erich Fromm, nos idos de 70, fui pensando nessa hipótese que ele formula, sobre se haveria o tal "amor verdadeiro", num tipo de sociedade que coisifica e quantifica tudo, referenciando poder e status com o fato de ter ascendência sobre quem lhe pertence o o que lhe pertence. 

 
Ama-se mais o status, o dinheiro e poder de alguém. Ama-se menos a quem tem alma e coração, será?   Uma mulher é assassinada porque deixou de querer um homem. Ele a persegue, ameaça, agride e por fim , a elimina. Depois, este mesmo homem prossegue sua vida, namora de novo, recomeça a vida, mesmo que se esquivando de pagar pelo seu crime, comprando "boas" defesas, se valendo dos artífícios da lei e do seu poder de compra.  

A família da mulher morta, a jornalista Sandra Gomide, principalmente seu pai, sentindo-se injustiçado, quando vê que o condenado consegue sair do tribunal, em liberdade, protesta:

- Não acredito mais nessa Justiça do nosso país. Estou com vergonha de morar no Brasil. Essa Justiça é uma porcaria, é por isso que o país está desse jeito.(João Florentino Gomide, ao ver o assassino de sua filha Sandra, o jornalista Antônio Pimenta Neves, ser condenado a 19 anos de cadeia e sair solto do Fórum de Ibiúna).
  

Todas nós, em algum momento , nos sentimos mesmo injustiçadas, e lutamos por espaços, por direitos de ser livres. Temos nas nossas histórias os instantes em que presenciamos ou sofremos este tipo de discriminação milenar, na cultura que indica para as mulheres necessidade de lutar incessantemente contra posturas de possessividade.  

Homens reais ou representativos, vão matando sonhos, em tantas mulheres, ainda que não as matem de uma vez, vão lhes tirando os sorrisos, as esperanças, vão decepcionando por seus atos, abandonos, deboches, desrespeitos, e elas que se cuidem, que se organizem, juntas, internamente, para que suas chamas de viver não se apaguem.
  

Nós todas precisamos matar sim, das nossas histórias , a possibilidade de permitir que algum "macho", poderoso , sentindo-se o galo do terreiro, nos reduza a uma simples fêmea da espécie, com função serviçal ou reprodutora, sem o direito de pensar, de ir e vir, de voar , de viver.
  Somos muito mais, comandantes dos nossos destinos, somos o outro lado da moeda, somos a parte reprodutora que cria nossas crianças, que lhes dá a formação de respeitadoras das diferenças e de equilibradas parceiras dos seus pares. Salvo os deslizes provocados pelas patologias, não se pode aceitar, em sã consciência, crimes dessa ordem. Prepotência, mal humano a ser considerado como praga de gente que se auto-define como poderosa.

O assassino é um jornalista renomado. E daí?
  Agiu como um ser frio, calculista, vingativo, cruel, nazista, desumano, desalmado, prepotente e arrogante.
Sua culpa é tão igual a de qualquer Zé Mané que mata a ex-companheira por motivo torpe na favela de Heliópolis e amarga uma prisão por 20 anos, porque não teve advogado bem pago.  

O Pimenta, se a lei for justa e cumprida, terá que pagar com a perda da sua liberdade de ir e vir pelo crime que cometeu. Tem que amargar na prisão a sua condição de condenado, culpado, infeliz algoz de uma mulher que ele conheceu, submeteu, comandou, achou que dominou, limitou os passos, tentou conter os sentimentos, cujo amor perdeu ( talvez ela tenha mesmo amado o homem que viria a eliminá-la) e não soube lidar com a rejeição, direito inalienável de todas nós.

Nenhuma de nós é obrigada a ficar com um homem que não deseja mais.
Nenhum homem pode matar uma mulher por esse motivo.

Sandra Gomide morreu porque decidiu deixar Pimenta Neves. Este só sentirá na pele o peso da justiça, quando estiver privado da sua liberdade, cumprindo a pena que lhe for imputada.


Hoje, eu queria falar dela e de nós todas. Para que nossas atitudes sejam repensadas todas as vezes que estivermos com homens dominadores, ou com os que nos afetam ameaçando nosso direito básico que é a liberdade de pensar.
Tanto faz sejamos nós jornalistas como a Sandra, ou domésticas como tantas Marias que morrem pelas mãos dos homens a quem um dia entregaram seu coração e depois não tiveram direito e nem a liberdade de escolher deixá-los.   Mas eu preciso falar também sobre os trâmites nos bastidores e porões do aparato judicial, com suas nuances que estabelecem brechas para que os advogados manipules benesses e privilégios aos seus clientes.  

Liminares e recursos, figuras jurídicas respeitosas, servem de base nesse e em outros casos para que cidadãos autores de deslizes sociais bárbaros possam usufruir de vida normal, enquanto suas vítimas, sem direito à ressurreição, tenham se transformado em pó, em saudade, em lamento, em impotência por parte dos seus entes queridos, e em perplexidade e até revolta dos que acompanham o aviltamento da sociedade dita organizada, com injustiça que nos envergonha, ou com decisões que nos humilham.