ADEUS À FONTE SAGRADA

ZédejesusBarrêto
04/12/2007 às 21:28
   A implosão/demolição da Fonte Nova assinala o fim de uma era do futebol baiano. Naquele templo sagrado eu vi jogar um semi-deus, Pelé, no auge de seu esplendor. Ali brincou também um anjo de pernas tortas chamado Garrincha. Vi Zizinho desfilar soberbo, em fim de carreira.  Didi, Gérson, Rivelino, Ademir da Guia, Tostão, Dirceu Lopes, Figueiroa, Sanfellipo... 


  Meu saudoso pai, Seo Zé (que tinha uma barraca na rua da entrada da velha Água de Meninos), me levou para conhecer a maravilha em 1953, o Vitória campeão com um time que tinha um ataque arrasador: Tombinho, Quarentinha (que jogou no Botafogo de Mané ), Juvenal (o "Jegue Alemão", pela patada), Alencar e Ciro. Mas foi o Bahia de 54 que me fez a cabeça para sempre: Oswaldo Baliza, Bacamarte, Juvenal (o mesmo da Copa de 50, que está vivo ainda e precisando de ajuda), Rui, Job(Ivon), Raimundo, Fontoura, Naninho, Lierte, Ruivo(Maneca) e Izaltino.


 Com a Fonte Nova começou a grande rivalidade, a festa do Ba x Vi. Em 57, saí do estádio em lágrimas depois de ver o Bahia ser goleado pelo rubro-negro, 4 x 0, que tinha um time inesquecível, com Pinguela, Nelinho, Boquinha, Enaldo, Teotônio, Matos, Lia e Salvador. Naquele gramado vi nascer um dos maiores craques que a Bahia já produziu:  Roberto Rebouças, que jogou com classe e raça até os 42 anos, e já nos deixou.

  Inesquecíveis os clássicos com o Botafogo de Garrincha, o Vasco de Almir  e Belline, o Fluminense de "São" Castilho, o Santos de Zito, Mengálvio, Dorval, Coutinho (Toninho) Pelé e Pepe. Ah! O glorioso Bahia de Nadinho, Leone (Hélio), Henrique, Vicente (Roberto) e Nenzinho(Florisvaldo), Flávio (Nisinho), Mário (um dos maiores meias que vi jogar), Ari, Marito, Alencar, Léo Briglia e Biriba.  Marito e Leo estão vivos, podem contar as façanhas de um futebol-arte.


  No piso fofo e de grama alta, macio e aconchegante da Fonte (onde até bati umas bolinhas, graças a Deus), vi jogar o Leônico de Gagé e Armandinho, o Fluminense de Delorme, o Galícia de Valtinho, Raul, Silvio Mário ...  times maravilhosos campeões na década de 60. 

  Vi atuar pelo Vitória um negão que era a réplica física de Pelé, arisco e goleador, chamado Jorge Bassu. Ele jogava ao lado de um maestro, cracaço de bola, mulatão esguio de pernas longas chamado Cléber Carioca, inesquecível (morreu de cachaça, arriado e esquecido defronte de uma carvoaria no bairro do Uruguai). Zé Eduardo, Baiaco, Fito, o magistral Douglas, Picolé, o goleador Beijoca, Jesum, Osni fenomenal, Mário Sérgio, Fischer, Almiro, o capeta André Catimba ... 


  Juro, meninos, era um outro futebol. De sonho, de muita técnica, de bola entre as canetas, de dribles desconcertantes, de chapéus e banhos de cuia, de tabelas precisas, lançamentos longos, inteligência, de canhonaços ( alguém chutou mais forte do que Pepe? Do que Raimundo Mário, Canhoteiro, Antonio Mário do "mais querido" Ipiranga?). Futebol da catimba esperta de um meia chamado Israel, de um atacante endiabrado chamado Mascote.


  De goleiros que atuavam sem luvas, faziam pontes e se orgulhavam de não soltar bolas - Nadinho, Lessa, Periperi, Detinho... mais tarde Butice, Andrada, antes da geração Dida. 


  Vi a Fonte balançar com mais de 115 mil pessoas num clássico contra o Flu do Rio, o brilho de um time campeão que tinha craques como Paulo Rodrigues, Bobô, Paulo Robson, Gil, Zé Carlos, Charles, Marquinhos...


  Da Fonte Nova sai glorioso, quantas vezes, em estado de graça, pelo tricolor em campo (há quanto tempo, meu Deus!) ou pelo simples tremular da torcida. Vi cenas hilárias como a de Henricão correndo atrás de Mascote, Beijoca escorraçando Edinho, Rodolfo Rodrigues escarreirando Paulinho Mac Laren, Romero puxando os cabelos do danado Osni e provocando uma batalha campal entre os jogadores do Ba x Vi, a torcida em frenesi. Saí também acabrunhado por goleadas sofridas, algumas humilhantes, sobretudo diante do rival rubro-negro, ultimamente.

  Também entristecido pelo mau futebol jogado nos últimos tempos, a deusa-bola maltratada em campo.  Sai ainda arrasado, duas vezes: Uma em 71, quando da arquibancada, bem aquela que fica diante do Ginásio Antonio Balbino, vi dezenas de torcedores em pânico incontrolável se atirando para fora e para a parte de baixo das arquibancadas, fugindo de um barulho que até hoje ninguém sabe a origem e que, no horror da galera, era a arquibancada nova ruindo. Encostei-me numa das "torres" de cimento e sobrevivi ao terror da massa.


  Chorei e não dormi direito ainda, desde o domingo, 25 de novembro de 2007, dia da Baiana do Acarajé. Estava lá na Fonte, vendo aquele baba infame da penosa classificação do tricolor para a série B, vejam que decadência!   E, na seqüência, a morte de oito torcedores que caíram por um buraco do cimento corroído pelo tempo, pelo balanço da torcida e, sobretudo, pelo descaso dos que deviam cuidar do patrimônio público.


  Lágrimas pelos devotos tricolores que perderam a vida.


  E uma tristeza infinda também porque tive a consciência, ali, naquele domingo, que presenciava o último grande espetáculo da inigualável torcida do Bahia em seu templo sagrado, cenário maior de suas glórias. Sim, "espetáculo da torcida", porque há muito o futebol chinfrim do time tricolor não pode ser classificado como espetáculo.


  Como bem disse o amigo, companheiro tricolor e jornalista Rasec (naquele mesmo domingo, conversando baixinho antes de começar o jogo, ambos extasiados com o colorido e a festa nas arquibancadas): "Essa torcida é puro narciso, ela não vem ver o time, ela vem se ver no estádio; o campo verde é apenas um espelho, onde ela, a torcida, se mira, vaidosa, refletida".

Bela, majestosa, deslumbrante, indescritível e inexplicável - isso que é a Torcida do Bahia.


  Pois bem, o espelho onde ela se mirava partiu-se, quebrou, não mais vai refletir a glória vermelho, azul e branco!   A  Fonte Nova acabou!  É o fim de uma era.  Não tem mais a kombi do reggae, o churrasquinho da Ladeira, o mar tricolor subindo e descendo, a "invasão" da Bamor, o "xaréu" do final, a mijada no muro, a saída em lágrimas no bolo de gente a gritar  "Bahêêêa"!,  o Hino Sagrado do professor Adroaldo berrado em cada caixa de som de todos os carros, na goela do povão: "Somos do povo o clamor, ninguém nos vence em vibração!". 

  Acabou. Quebrou-se o cristal, foi-se a magia.


   O que virá, ninguém sabe ainda. Mas o tal "Arenão", que nome venha ter, jamais terá o encanto da Fonte Nova, a mítica ferradura aberta para o mistério dos encantados do Dique.  A Fonte Nova bem que merece um livro contando toda a sua história. Cada jogo uma página. Fonte de alegria e dor, assim é feita a vida.