No último dia 5, completou-se 450 anos da morte de Diogo Álvares, o Caramuru, figura lendária da história da Bahia (e do Brasil), data que passou em brancas nuvens na cidade do Salvador da Bahia, infelizmente, vivendo momentos de baixa em sua atividade cultural. Até hoje ninguém de bom senso entende porque Salvador deu as costas ao casal Diogo Álvares e Catarina Paraguaçu, o mais importante da história da cidade, família que durante três séculos com seus descendentes esteve presente em todos os acontecimentos relevantes do Estado.
No século XVI e princípios do XVII, com os Caramurus, Moréias e Moribecas; nos séculos XVII e XVIII, com os Ávila da Casa da Torre, Aragões e Guedes de Brito; no século XIX, os Pires de Carvalho e Albuquerque. Quase toda elite açucareira do Recôncavo, responsável pela vitória na Guerra da Independência da Bahia, em 1822, descende de Camaruru/Catarina: as famílias Moniz Barreto de Aragão, Aragão e Souza, Bulcão, Rocha Dória, Costa Dória, Borges de Barros, Carneiro da Rocha, Sodré, Bandeira, entre outras.
E porque esse descaso com o casal Caramuru/Catarina? Por que a Bahia é a assim mesmo: pense num absurdo; acontece aqui. A Praça do Rio Vermelho que deveria se chamar Diogo Álvares, o Caramuru, homenageia Cristóvão Colombo, que nunca pisou os pés em Salvador. A praça da Graça, que deveria ter o nome de Catarina, homenageia um médico estrangeiro que pouco tempo viveu na Bahia. A rua mais antiga do Brasil, Direita do Palácio, com quase 500 anos se chama Rua Chile, homenagem a uma esquadra chilena que aportou na cidade no século XX.
Porque os órgãos da cultura (IGHB, Fundação Gregório de Mattos, IPHAN, Secult, UFBA, etc) não se mexem para colocar os pontos nos iis e dar a César o que é de César? Sabe Deus. Existe uma estátua na Praça da Sé que homenageia o bispo Pedro (Pero) Fernandes Sardinha para administrar a primeira Diocese do Brasil, em São Salvador da Bahia, fundada em 25 de fevereiro de 1551, através da bula Super Specula Militantes Ecclesiae do papa Júlio III.
Sardinha só chegou a Bahia em junho de 1552 e permaneceu até 1556 quando, depois de enfrentar uma briga com o governador Duarte da Costa, ao não aceitar o comportamento lascivo do seu filho, foi devolvido a Portugal, naufragando na foz do Rio Cururipe, Alagoas, sendo devorado (ele e mais 100 integrantes da nau Nossa Senhora da Ajuda) pelos índios Caetés. Os nativos não sabiam quem era soldado, padre, artesão, e todo mundo caiu na brasa. Mas ganhou sua estátua na Sé.
Caramuru viveu na Bahia entre 1509/10 até sua morte em 1557. Fundou um império, ergueu o primeiro templo católico no Brasil (a ermida da Graça), constituiu a primeira família miscigenada do país, instalou a primeira vila da original cidade do Salvador, recebeu do rei Dom João III (embora Portugal o detestasse, pois, negociava com os franceses) o título de Cavaleiro da Casa Real, casou-se com a nativa tupinambá Quayadin em Saint Malo, no Noroeste da França, em 1528 (feito considerado único na história nacional) e é patrono da lenda mais fantástica do Brasil. De quebra, ajudou Tomé de Souza a erguer a cidade fortaleza, em 1549.
E nada, nem uma estatueta de bronze para homenagear essa extraordinária figura da História da Bahia. Quer mais: quem comandou a independência da Bahia? Quem foi a vanguarda do movimento (ideológico e financeiro): Joaquim Inácio Bulcão, e seus sobrinhos os três irmãos Pires de Carvalho e Albuquerque, entre eles o morgado da Torre, Antonio Joaquim. Porque guerra não se faz sem grana, sem capital. E, independente do que se comemora hoje nas ruas da cidade no 2 de Julho, a retaguarda financeira e ideológica da guerra esteve sob o comando dos descendentes de Caramuru/Catarina.
Querem mais exemplos: o marechal Castelo Branco, chefe mor da Redentora de 1964, só esteve na cidade do Salvador, salvo melhor juízo, um ou duas vezes, na inauguração do Teatro Castro Alves e outra mais. É patrono de um vale: Vale de Nazaré com direito a pedestal, estátua e tudo mais. E daí!: que fez Castelo Branco? Arranjou dinheiro para o então prefeito ACM abrir as avenidas de Vale, uma obrigação do Estado. Sua relação com a história da cidade é nenhum. Mas, lá está Castelo emoldurando o Vale de Nazaré.
Segue agora um exemplo de apenas um dos descendentes de Caramuru/Catarina, sua filha Genebra Álvares que se casou com Vicente Dias, cavaleiro da Ordem de Cristo, donde nasceram Diogo Dias e Melchior Dias Moréia e daí seus descendentes Francisco Dias D´Ávila, Bernandro Pereira Gago, Francisco Dias D'Ávila II, Catarina Fogaça, Leonor Pereira Marinho, Garcia D'Ávila Pereira de Aragão IV e centenas de outros (netos, bisnetos,etc). Dona Leonor, casada com José Pires de Carvalho e Albuquerque foi a primeira juíza da festa do Senhor do Bonfim, em 1761. Francisco Dias D'Ávila II foi o desbravador do Piauí, dono de 5% do produto bruto brasileiro em fins do século XVII.
Independente de classe social, porque essas pessoas eram os poderosos da época e a história também se organiza com os movimentos populares, isso significa história pura. Representa ligação com a cidade do Salvador. Diogo Álvares embora tenha se transformado numa lenda (Caramuru, a partir do poema épico de José de Santa Rita Durão, precursor do indigenismo, séc.XVIII), foi figura de carne e osso e está sepultado na catedral basílica de Salvador, provavelmente na cripta dos Gil de Araújo, ou na campa dos Guedes de Brito.
Catarina Paraguaçu faleceu em 26 de janeiro de 1587 e está sepultada na igreja da Graça, na campa reformada em fins do século XVIII, pelos Pires de Carvalho e Albuquerque, igreja que passou por uma reforma, recentemente. A Prefeitura, recentemente, inaugurou uma pracinha furreca com seu nome. Se era para fazer homenagem dessa natureza, melhor seria não ter feito.
Em resumo: a velha Bahia cansada de guerra ou como diria Mário Cravo Jr. a velha Bahia mundana, em lembranças quando ergueu a cruz caída na Praça da Sé e olhava o casario do comércio, abre as portas para uns imerecidos personagens e acontecimentos; e fecha outras para quem de direito tem.