DOS MISTÉRIOS DE SER DEUS

Fernando Altemeyer Júnior
26/03/2007 às 10:10
DOS MISTERIOS DE SER DEUS..
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   "Há dez dias publicou-se a nota condenatória: "O padre Jon Sobrino
tende a diminuir o valor normativo das afirmações do Novo Testamento e dos
grandes Concílios da Igreja antiga. Tais erros de índole metodológica levam
a conclusões não conformes com a fé da Igreja em pontos centrais da mesma:
a divindade de Jesus Cristo, a encarnação do Filho de Deus, a relação de
Jesus com o Reino de Deus, a sua auto-consciência, o valor salvífico da sua
morte." Notificação da Congregação da Doutrina da Fé, Vaticano, 14 de março
de 2007.

  Quais as razões para este gesto? Quais as razões para a condenação
da obra de um teólogo tão requintado e fecundo? Terá ele diminuído o valor
da mensagem evangélica e errado em seu método? Terá negado a divindade de
Jesus? Terá silenciado sobre a salvação trazida por Cristo? O que diz Jon
Sobrino em seus textos e o que afirma a teologia latino-americana em sua
obra intelectual?

  Outros tantos teólogos foram condenados nos últimos 32 anos: Hans
Küng em 1975 e 1980; Jacques Pohier em 1979; Edward Schillebeeckx em 1980,
1984 e 1986; Leonardo Boff em 1985; Charles Curran em 1986; Tissa
Balasuriya em 1997; Anthony de Mello em 1998; Reinhard Messner no ano 2000;
Jacques Dupuis e Marciano Vidal em 2001; Roger Haight em 2004 e Jon Sobrino
em março de 2007. Há algo de comum entre eles? Há razões para explicar
esses conflitos dogmáticos?

   Apresento aqui um quadro comparativo das teologias produzidas na
América Latina e na Europa, para entender o que aconteceu com o padre
jesuíta Jon Sobrino.

  Na América Latina, a formulação da fé é direta. Na Europa, é
reflexa. Na América Latina, o ponto de partida é o rosto de Cristo
transfigurado nos pobres. Na Europa, o ponto crucial é a transfiguração do
Cristo na filosofia e no pensamento clássico. Na teologia latino-americana
a preocupação é prática. Na Europa, é lógica. Na América Latina vemos o
povo crucificado como cruz divina. Os pobres são cruciais. Na Europa
fala-se do Deus crucificado como cruz humana. A Igreja é crucial.

 Na América Latina, a consciência histórica é um critério de
seguimento de Jesus. Crer é seguir Jesus. Na Europa, o caminho de Jesus é
objeto de investigação e critério para discernir entre o crer e o não crer.
Crer é entender Jesus. Na América Latina, a pregação de Jesus sobre o
Reinado de Deus é um contexto vital e mediação concreta para conhecer ao
Deus vivo e verdadeiro. O Reino revela o amor e a verdade. Na Europa, a
proclamação da verdade é a fonte segura do fazer teologia. A verdade revela
o amor e o Reino.

 A Cristologia latino-americana (em particular na obra de Jon
Sobrino) se faz a partir da dor humana, especialmente da humanidade
padecente em sua carne e corpo. A Cristologia européia se faz a partir do
conhecimento humano e da angústia existencial em sua alma e mente. A
Cristologia latino-americana vem de baixo para cima. Do histórico de Jesus
ao ser de Jesus. Do ser de Jesus ao ser de Deus. É alinhada à escola
teológica de Antioquia, ao pensamento dos primeiros evangelistas e a São
João Crisóstomo. Fazer teologia muda a vida dos teólogos. Já a Cristologia
européia vem de cima para baixo. Do ser de Deus ao Cristo da fé. Do Cristo
ao Jesus Ressuscitado. Do Ressuscitado ao crucificado. É alinhada aos
pensadores alexandrinos, particularmente ao grande doutor Atanásio.

 A Cristologia latino-americana participa da esperança libertadora
dos povos crucificados. É uma Cristologia ascendente, inspirada em textos
clássicos dos aristotélicos e tomistas. Jon Sobrino faz parte da família
espiritual que bebe desta fonte teologal. A Cristologia européia trabalha a
encarnação do Verbo como manifestação salvífica de Deus. É uma Cristologia
descendente, inspirada em textos clássicos dos platônicos e agostinianos.
Os teólogos da Congregação da Doutrina da Fé têm bebido desta fonte
espiritual.

 A Igreja latino-americana construiu uma teologia que dialoga com o
magistério local. E este magistério se exprimiu teologicamente em Medellin,
Puebla e Santo Domingo, em documentos pastorais de serviço ao povo e ao
Evangelho. O que foi escrito em Medellin, em 1968, foi uma profecia
autêntica do povo de Deus. O que foi assumido em Puebla, em 1979, foi a
opção do Evangelho pelos pobres e contra a pobreza. O que foi encarnado e
inculturado em Santo Domingo, em 1992, foi chave interpretativa dos sinais
dos tempos. A missão da Igreja não é restauradora. É anúncio feliz da vida
em Cristo.

 A teologia gestada em El Salvador, no Brasil, no Chile e em
praticamente toda América hispânica e criola dialogou com o magistério
local e universal. Assumiu colóquios fecundos com pastores como dom Luciano
Pedro Mendes de Almeida e dom José Ivo Lorscheiter. Foi sustentada por
cardeais como Aloísio Lorscheider e Paulo Evaristo Arns, e por patriarcas
da Igreja latino-americana que podem ser chamados de novos padres da
Igreja: Jaime Francisco de Nevares, Alberto Pascual Devoto, Eduardo
Francisco Pironio, Enrique Angel Angelelli (argentinos); Jorge Manrique
Hurtado (boliviano); Avelar Brandão Vilela, Fernando Gomes dos Santos,
Helder Pessoa Câmara, Romeu Alberti (brasileiros); Enrique Alvear, Manuel
Larrain Errazuriz, Raul Silva Henríquez (chilenos); Gerardo Valencia Cano
(colombiano); Oscar Arnulfo Romero (salvadorenho); Leônidas E. Proaño
Villalba, Pablo Muñoz Vega (equatorianos); Juan Gerardi Conedera
(guatemalteco); Marcelo Gerin (hondurenho); Bartolomé Carrasco Briseño,
José Salazar López, José Alberto Llaguno Farias, Sergio Méndez Arceo
(mexicanos); Marcos Gregório McGrath (panamenho); Ramón Bogarín Argaña
(paraguaio); Juan Landázurri Rickett (peruano) e Carlos Parteli Kéller
(uruguaio).

 Todos filhos do Vaticano II que retomaram a antiga patrística.
Padres testemunhas como Oscar Romero e Enrique Angelelli. Mártires que
semearam igrejas em todo o continente, como na expressão de Tertuliano.
Vivem a teologia na doação de suas próprias vidas.

 A segunda onda patrística dos apologistas que defenderam a fé face
ao pensamento grego e ao império romano, também tem paralelo em bispos omo >Manuel Larrain e especialmente no indígena Leônidas Proaño. Apologistas das
culturas indígenas e da fé verdadeira. Vivem a teologia na escuta dos
clamores surdos de seus povos.

 O sofrimento pessoal de Jon Sobrino pode ser um momento fecundo para
que se descubra que a humanidade sacratíssima de Jesus é o caminho seguro
para contentar a Deus, para alcançar grandes graças do Espírito Santo e,
sobretudo, pode ser a porta segura para que Deus nos mostre seus grandes
segredos. São Francisco mostra isso ao receber as chagas de Cristo. Santo
Antônio de Pádua, ao apresentar em seu colo o menino Deus. São Bernardo e
Catarina de Sena em seus poemas de amor à humanidade de Deus feito humano.
  E, enfim, a doutora Santa Teresa de Ávila, que em seu Livro da Vida, no
capítulo 22, afirma categoricamente que o melhor caminho para a mais alta
contemplação de Deus passa pela humanidade de Jesus."