Colunistas / Causos & Lendas
Lobisomem de Serrinha

A BEZERRA SAGRADA E O GATO OVUDO QUE PODE SER DESPACHADO PARA BRASÍLIA

Esta é a sexta crônica de TF do livro "Lobisomem de Serrinha, a nuvem de fogo e o fim do mundo". Leia no aplicativo wattpad
10/05/2020 às 11:23
  Neste domingo do dia das mamães eu e minha digníssima esposa Ester Loura almoçamos juntos e isolados do mundo, em 53 dias de prisão domiciliar diante do Covid-19 que os doutos acadêmicos chamam de confinamento social. Felizmente, aqui na Serrinha, antenada com as novas tecnologias e a inteligência artificial atravessa-se a pandemia com perdas financeiras enormes, mas, desfrutando do possível.

  Presenteei a Ester com um correntão de ouro 14 adquirido em Manoelito dos Anéis, diria encomendado com exclusividade via online com um medalhão em marcassita contendo nossas iniciais bem vistosas dentro de um coração, providenciamos pelo Serra Eat uma pizza 4 formages da Tropo e, de nossas reservas em adega, um cabernet de Espanha para brindar tão magnánima data.

  Entendo que serei retribuído com algo ainda mais relevante no dia dos papais, também em nosso sitio, que o povo sabiamente chama de Toca do Lubi, se até agosto a pandemia seguir adiante, época também que minha neta Sol completará 15 lustros e está programada uma festa no pub da Morena Bela.

  Ester vestiu o seu melhor. Um longo estampado em flores que parece a selva Amazônica depois de recolher a pijama aflanelada em quadros, à semelhança de uma toalha de pizzaria, de excelente padrão em peça italiana. Como não foi possível receber os nossos filhos e netos, a comemoração foi apenas dos dois pombinhos em love, papo agradável, lembranças, quando perguntei-lhe como ia seu inglês uma vez que, há dias, não a vejo a cantar Madonna, e a moda atual falar de um tal de "lockdown" o popular fecha tudo ou tranca rua.

- Vai muito bem obrigado. Estou na fase Marroni e não quero saber de Elton John nem Madonna, respondeu.

- Perguntei apenas para provocar. Sei de sua sapiência e creio que, se morasse no antigo Goiás poderia ser a professora da autoridade que adquire conhecimentos da língua de Shakespeare e resolveu, ato contínuo, oferecer-lhe um cargo comissionado na República a soldo de R$10 mil mês segundo li num portal de notícias nacional, comentei.

- Primeiro que não moro no Goiás nem pretendo morar naquele hospício onde lunáticos se comunicam com ovnis, uma vez que nasci e me criei na Serra e aqui completarei meu ciclo inicial até ser conduzida a outra esfera espiritual, respondeu.

- Como essas modernagens atuais poderia dar aulas online e receber capilé também online via Caixa. E, se for o caso, aceitar essa boquinha empregatícia comissionada, pois, se coisa boa há no mundo é emprego governamental.

- Jamais aceitaria uma situação dessa natureza e sabes muito bem disso. Partirei a Saturno digna, jamais fantasma como muitos que existem por aí. V. Exa. que está a me arreliar deveria, isto sim, falar com os tais dos deputados que são seus amigos e almejar a direção da FUNZARTE cargo ainda vago depois do nomeia desnomeia do maestro.

- Meu estudo é pequeno, saber ralo. Mas, na Serra temos nomes a altura de tal função se assim oferecessem e cito, rapidamente falando, o produtor cultural Ticão do Vagão, o pintor Zaninho Peixinho, o musicista Graúna da Gaita, o artista plástico Fênio Celestial, só para ficar em três das nossas celebridades.

Almoço a servir, vinho em degustação, castanhas de Sergipe Del rey sobre a mesa, amendoins sem sal, azeitonas negras, carícias com a madame, o telefone fixo da sala toca e Ester apressou-se em atender. Já fiquei invocado temendo ser novo trote dos meus adversários políticos. Ester completa: - É para V.Exa.

Pelo tratamento imaginei logo ser de Brasília. 

- Quem é, quiser saber antes de atender o fone.

- Ora, venha atender e deixe de lero-lero, pois, se trata de uma chamada local de sua sobrinha Tana Pinharada.

Menos mal. Levantei-me com cautela usando minhas pantufas viúvas negras, levei comigo a taça de vinho e atendi o telefone. - Alô...

- Oi tio! Aqui é a Tana. Desculpe lhe importunar nesta data tão importante mas a mamãe manda lhe avisar que aqui na Fazenda Casa das 7 Mulheres nasceu uma bezerra sagrada e ele deseja que, passada a pandemia, venhas aqui até a Capela do Retiro que vamos batizá-la com todas as honras no dia de São Francisco, serviço a cargo do padre Dugu, no dia 4 de outubro, e o senhor será o padrinho.

- Se não tivesse a beber diria que estás a brincar com minha cara - respondi.

- É vero, Coração, assim é o nome da cria, é filha da também sagrada Coração em parceria com Dior. Descobrimos isso agora. Meu falecido pai, certa ocasião, quis vender Coração, a mãe, e ela refugou. Não subiu na carroceria da caminhonete do comprador nem a pau. A venda foi desfeita. E agora, nasceu sua filha com um coração na testa. Na madrugada do nascimento desceu uma estrela candente do céu coisa nunca vista aqui na Cobiça, Retiro, Tanque Grande e região, algum aviso do céu.

- Está bem. Aceito o convite. Na época, lembre-me. Bjs.

Desliguei o telefone e estava a contar a história a Ester, das vacas e bezerra sagradas das Pinharadas, benzendo-me, vaca originária da Índia que cruzou com touro francês, quando o telefone toca de novo. Como estava perto do aparelho atendi. - Alô.

- Oi seu Lubi. Aqui é Tonha. Gostaria de falar com a Ester para parabenizá-la pelo dia das mães.

- É pra você: dona Antonha Licorista.

Oi! querida atendeu Ester tapando a boca do fone com a mão e dizendo que deixaria o viva voz ligando para não repetir a conversa. 

- Quero lhe desejar feliz dia das mães, felicidades mil e paz de espírito.

- Pra você, também, minha querida.

- Queria tomar um minuto do seu tempo para contar que ando assustada com a visita de um gato preto na minha varanda, sempre a partir da meia noite. Quando desligo a TV e as luzes da sala se apagam ele aparece.

- Vixe Maria, benzeu-se Ester. É um gato bonito, saudável. Pode ser um príncipe encantado.

- Nada. É um gato velho, mijão, ovudo. Se ainda fosse um Mustang, tudo bem. Mas é um cadilaque caído. Mais encorujado do que o príncipe Carlos do Reino Unido. Dorme no meu banco de madeira da varanda e toda noite faz xixi nas almofadas. No outro dia, pela manhã, tenho que lavar o lugar. 

- E mijo de véi fede...

- E como fede. 

- Agora, tenha cuidado no que vai fazer porque uma irmã de meu marido (falou baixinho) descobriu que ela tem uma vaca e uma bezerra sagradas e até convidou-a para batizar a bezerra que leva o nome de coração. Foi um aviso do céu e uma estrela candente igual a do nascimento de Jesus desceu até sua fazenda.

- Você não quer dizer ou insinuar que esse gato preto é sagrado e está me dando algum aviso do céu. Acredito que seja mal assombrado, isso sim, asseverou Tonha.

- Sendo assim, o melhor era você capturar esse bichano e mandar para Brasília pra tentar resolver os problemas por lá.

- Vou pensar, vou pensar. O certo é que já mandei fazer almofadas novas e esse gato não vai mais sentar na minha varanda. Que vá dormir noutro lugar, na casa de Sêo Tolentino Caneco ou noutro canto.

- Beijos e boa sorte.

Seguimos no nosso almoço, o Cabernt descendo bem, a pizza deliciosa, Ester comenta: - Você ouviu a conversa.

- Ouvi. Agora, há uma bezerra e um príncipe encantado na pele de gato.

- Quando digo a você que estamos perto do fim do mundo não acreditas, finalizou Ester. 

Degustamos o vinho, saboreamos a pizza e ficamos na varanda a namorar. Céu limpo, azul, nenhuma estrela candente a cair do firmamento.

O amor é lindo mesmo em tempo de coronavirus.