MAIS AGRESSÃO À HISTÓRIA DA CIDADE DO SALVADOR

Tasso Franco
21/07/2009 às 15:02
Foto: BJÁ
Sec. Fernando Scmidt e prefeito João Henrique na missa pelos 500 anos de Caramuru, na Graça

      O secretário Fábio Mota anunciou no Correio que a Prefeitura vai mesmo construir um Memorial a Diogo Álvares, o Caramuru, no bairro do Rio Vermelho. Vai ser um fato inédito no país porque será a primeira vez que uma ficção, uma lenda, merecerá tal distinção. Se esta agressão à história de Salvador for concretizada (espero que o bom senso ainda prevaleça) estou curioso para saber quais serão os documentos a serem expostos no tal memorial, salvo o livro de Santa Rita Durão, o poema épico "Caramuru" que versa em estilo Camões sobre a lenda.


      No mais, só se colocarem um mosquetão figurativo para ilustrar os tiros que Diogo Álvares teria dado nos pássaros e as imagens que retratam a própria saga poética encontrados em vários livros com essa configuração. Não sendo história, não tendo fontes primárias sequer da origem de Caramuru, se português ou galego-língua (espanhol da Galícia) como a ele se referiu em carta a Dom João III o donatário de Porto Seguro, Pero de Campo Tourinho, só mesmo a criatividade acima do real pode aconselhar tal incúria.


      Também quero ver se o arquiabade do Mosteiro de São Bento, Dom Emanuel d'Able do Amaral, agora imortal da Academia de Letras da Bahia, ordem religiosa que herdou por doação a Sesmaria conferida pela Corte de Lisboa a Diogo Álvares e Catarina Paraguaçu, no sítio da Graça, onde sempre o casal viveu além do altiplano da Barra, vai ficar calado, não encaminhará um protesto formal a Prefeitura de Salvador. O mesmo acontecendo com a Amorgraça, a Associação de Moradores da Graça.


      Da mesma forma espera-se que os historiadores baianos e o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia reajam a essa agressão, pois, se é pra colocar um memorial da lenda do Caramuru, no Rio Vermelho, abre-se os precedentes para também a comunidade de Itapuã requerer tal mérito de um memorial à lenda do guerreiro Abaeté; o bairro de Paripe exigir um memorial a São Tomé,; e a associação dos amigos da Boca da Mata, um memorial ao lobisomem.


      Essas são lendas da cidade como existem tantas outras em bairros e comunidades, umas mais famosas; outras menos. A lenda do Abaeté sugere que as águas da lagoa surgiram do choro de uma Iara. Essa Iracema de água doce teria se apaixonado por um tupinambá que habitava Itapuã. As areias foram originárias do véu da sereia com quem Abaeté se casou. Posteriormente, com ciúme do guerreiro ela o transformou num boto que vive até hoje por lá. Eu próprio já coloquei essa lenda num dos meus livros (Catarina Paraguaçu, a Mãe do Brasil) situando que Abaeté continua morando na lagoa com a Iara, num castelo.


      Diz-se, ainda, na crença popular que, homens casados não podem passear nas águas da Lagoa do Abaeté sozinhos, pois, a qualquer momento, eles podem ser atraídos pela sereia. Dorival Caymmi em sua composição praieira (A Lenda do Abaeté) imortalizou o local: Abaeté tem uma lagoa escura/ Arrodeada de Areia Branca/ Ô de areia branca/ ô de areia branca/ De manhã cedo/ se uma lavadeira/ vai lavar roupa no Abaeté/ Vai se benzendo/ Porque diz que ouve / Ouve a zoada/ Do Batucajé.

            
        Já o Pai Sumé era um ente tupi semelhante ao Deus cristão. Jesus Cristo, com poderes ampliados. Exercia papel de legislador e proibia a poligamia e a antropofagia. Os jesuítas se espantaram com isso e no processo de dominação cultural chegaram a associar Sumé a São Tomé. E aí criaram uma lenda afirmando que alguns índios, enraivecidos pela limitação de sua sexualidade, atearam fogo à casa de Sumé. Teria, ainda, sido alvo de flechadas ou o amarraram a uma pesada pedra e o jogaram no rio.

     
       Misturando ficção com oralidade, os tupinambás acreditavam que Sumé partiu andando sobre as águas do Oceano Atlântico na Baía de Aratu, como fez Moisés. Uma outra versão conta que Sumé, ao ser perseguido pelos tupinambás, foi para o Paraguai e dali para o Peru. Para essa travessia, teria aberto uma estrada que ficou conhecida como Peabiru ou Caminho das Montanhas do Sol.

       
        Em 1947, o historiador Pedro Calmon transformou um célebre crime passional ocorrido em Salvador, no século XIX, em romance. A Bala de Ouro - História de um crime romântico foi inspirado no final tráfico do noivado entre uma jovem baiana chamada Júlia Fetal e o professor João Estanislau da Silva Lisboa. Misturou história com ficção. Na história real, Júlia Fetal terminou o noivado com Estanislau porque se apaixonou por outro rapaz. Cego de ciúmes, o professor premeditou o assassinato da ex-noiva, mandando inclusive cunhar uma bala de ouro especifica para ser usada na ocasião.

           
        O lobisomem dito acima da Boca da Mata, bairro da periferia de Salvador, aparece também em outras localidades de Salvador, na Mata Escura, Lobato, Lagoa da Paixão e Sussuarana. Fazem parte do imaginário popular, da cultura ancestral que vem desde a época colonial, mas, tal como Caramuru, não podem ser consideradas história. Não merecem memorial nem estátuas em praça pública.

           
       Já dito aqui neste espaço que, se cidade algum dia quiser homenagear Diogo Álvares, o personagem histórico, com respeito, que ponham seu nome no Largo da Graça e instalem um memorial no Mosteirinho Beneditino da Igreja da Graça. Lá é seu lugar. O Rio Vermelho é uma invenção, pura ficção.