BAÚ DA SAUDADE

Dimitri Ganzelevitch
13/06/2009 às 09:19

Foto: Arquivo
A belíssima cidade de Tanger, no Marrocos
 

Passamos umas horas muito agradáveis na Feira do Livro de Tanger. O palácio é suntuoso e, no pátio onde a exposição foi montada, o fim de tarde vê chegar um público numeroso. Muitos jovens. É impressionante a avidez do povo marroquino pela leitura.


Futuco pelas muito bem montadas barracas de várias editoras, tanto marroquinas como francesas, embora não pretenda comprar nenhuma nova publicação, por causa do excesso de peso na bagagem. Acabarei não resistindo a uma reedição de La femme de Mazagan de minha amiga Nelcya Delanoë.


Nelcya ficou mais conhecida por um magnífico trabalho de pesquisa histórica, Poussières d´Empire sobre os "voluntários" norte-africanos manipulados sem a mínima vergonha pelos governos francês, vietnamita e marroquino entre 1939 e 1974.


A mulher de Mazagan - hoje El Djadida - é na verdade, Eugénie, russa e avó da escritora, primeira mulher a exercer a medicina moderna no Magreb entre 1913 e 1945.  

Casada com o médico francês Pierre Delanoë, esta intrépida mulher foi reconhecida por seu trabalho, humanismo e abnegação em boa parte deste país sob domínio francês, mas ainda dominado por obsoletas práticas dos curandeiros tradicionais. Tiveram dois filhos, um, o cardiólogo e pai da Nelcya, Guy Delanoë, seria um dos assinantes da "Carta dos Cem", repudiando a atitude do governo francês em exilar o sultão Mohamed. Mais tarde, este regressaria como rei Mohamed V. Gente fina esta família, que não se amedrontou com a perspectiva de futuras retaliações, como de fato, aconteceram.


As gerações voam, os mais velhos morrem, os mais novos constroem seu destino, alguns com a ajuda do passado. Em malas guardadas em porões esquecidos, a adolescente Nelcya descobre velhos documentos, antigas cartas. A mítica avó, vinda da Rússia tzarista, chamava-se, antes do casamento, segredo bem guardado, Eugénie Rubinstein, portanto judia. A cortina se abre, entre o sol da verdade até então escondida.


Não posso deixar de fazer um paralelo com minha própria família. Teimou por duas gerações em negar minha convicção de que o avô Ganzelevitch, pai de meu pai, cuja esposa Annette chamava sempre carinhosamente de Yasha, era, no mínimo, de origem israelita. Assim indicariam seus papeis oficiais onde figura o primeiro nome de Yakof, ou Yakob, que vem a ser o mesmo. Meus tios sempre negaram a hipótese, como se fosse tara vergonhosa e um, mais radical e intolerante, Boris, acabou cortando relações comigo. Justamente ele que tinha, com seu narigão, o perfil mais semita da família!


Em contrapartida, a avó não se poupava em lembrar que era neta do poeta Thomas Moore (Irish melodies) amigo de Byron a quem este confiara suas memórias para serem publicadas depois da morte. E que haveria não sei que título nobiliário, logicamente colocado no meu berço, sendo progênito do progênito. Pelo menos alguma coisa herdei de meu pai...
 
Ou seja, numa família que se quer conservadora como noutra, mais aberta à realidade, que se poderia rotular "de esquerda", são enaltecidas, de forma idêntica, as origens julgadas prestigiosas e escondidos debaixo do tapete ou em baús esquecidos eventuais "deslizes" judaicos, tidos como acidentais.


Logo após a feira, com minha companheira Blanche pegamos carona de Tanger a Rabat com a historiadora Pauline de Mazières, de alta origem aristocrática russa, que acabará de publicar aquele fascículo sobre os Ganzelevitch.

A ela repeti minhas suspeitas. Com extrema elegância, cheia de dedos, enquanto dirigia o carro, a princesa me confessou que eu poderia estar certo, já que a irmã do avô Yakof se chamava Raissa, nome tipicamente judeu, acrescentando, para maneirar a cruel verdade, que muitos judeus passaram para o cristianismo no fim do século XVIII para fugir das perseguições. 


No caso especifico de meu avô, acredito que ainda era judeu e esta ter sido a razão pela qual ambos fugiram para África sem mesmo estarem casados, o que, na época, era escandaloso. Foi muito mais tarde, já de barriga proeminente, que minha avó, sempre mandona, pediu casamento ao belo engenheiro, cerimônia celebrada em Gibraltar.


Aporrinhações que dão os preconceitos!...