Sempre que vou comentar um livro de Geraldo da Costa Leal, odontólogo de Salvador que escreveu sobre a memória da "Cidade da Bahia" fico maravilhada com seus textos simples formulados por um homem comum, dito assim por ser generoso, educado, classe média que nasceu e viveu toda sua existência na capital baiana, sem pompas, sem ostentar qualquer tipo de luxo, salvo o moral, e que nos legou vários trabalhos com sua pena caridosa.
Já tínhamos comentado neste BJÁ noutra oportunidade o seu trabalho intitulado "Um Cinema Chamado Saudade", que produziu com seu irmão Luís Leal, médico e político, e agora vamos falar de "Perfis Urbanos da Bahia" - os bondes, a demolição da Sé, o futebol e os gallegos (Editora do autor, 2002, 234 páginas, capa Ana Paula de Carvalho Leal e Felipe de Carvalho Ventim, R$50,00 à venda nos sebos e no portal Estante Virtual) em que desliza sua pena sobre temas bem sugestivos da capital baiana, como os bondes - que não mais existem; a demolição da Sé primacial - um dos maiores crimes que aconteceram na cidade; o futebol - quando ainda era praticado no Campo da Graça; e os Gallegos - comunidade espanhola que dominava (e ainda domina) o comércio de padarias e pastelarias.
Imagino que os leitores mais abusados podem questionar o que interessa a eles saberem sobre bondes, um meio de transporte antigo e caduco; ou sobre uma igreja que, por ironia, foi derrubada para permitir a implantação de linhas de bondes no centro histórico de Salvador?
Diria que todo povo tem a obrigação de conhecer sua história. E se hoje a cidade está com a possibilidade de ganhar a implantação de um VLT, esse tal de Veículo Leve sobres Trilhos, que já roda na Europa há anos, e se trata, na verdade, um bonde sofisticado ou moderno, como queiram, eletrizado igual aos que rodavam no início do século em Salvador e ainda rodam com as carrocerias e hastes no modelo 1900 na cidade de Lisboa, no futuro alguém há de escrever sobre esse tema lincando com os bondes de tração animal.
Os bondes descritos por Geraldo, na inicial, em Salvador, eram puxados por burros e linhas foram implantadas na cidade baixa que, como sabemos, tem topografia plana, e os animais não se sacrificavam tanto como na cidade alta, enladeirada, e que sofreram o “pão que o diabo amassou” quando por lá chegaram. Com pouco tempo, no entanto, já no início do século XX foram eletrificados e as carrocerias importadas de Boston acompanhavam em tecnologia o que existia de mais moderno no mundo ocidental.
E Geraldo nos oferece além de dados técnicos sobre os bondes, os tipos que foram usados na cidade como o “carro salão” – com cortinas e varandas para uso em casamentos e receptivos de políticos; carro fúnebre - para sepultamentos; o bagageiro misto - para pessoas e cargas; o jardineira e outros.
Ademais, destaca como era o comportamento da população no seu uso, os motorneiros, as dificuldades técnicas para a expansão do sistema por toda a cidade, àquela altura, início do século XX esse tipo de transporte já chegando ao arrabalde do Rio Vermelho; os barracões, as oficinas, o movimento “quebra bondes” na ditadura Vargas, as músicas, os bondes e o Carnaval, enfim, um transporte que marcou época e foi o mais importante da capital depois do marítimo até a chegada das ‘marinetes’ (ônibus) em meados da década de 1930, e que perdurou como principal meio de transporte urbano até meados dos anos 1950.
Descrevea Geraldo sobre tipos de passageiros chamados “pongadores”, que subiam e desciam dos bondes, em movimento: ”Muitos rapazes com alta dose de irresponsabilidade e desamor à vida, instituíram uma perigosa diversão, pongar nos bondes. Os ’ponguistas’ desafiavam os motorneiros a imprimirem toda velocidade no carro, eles sadicamente eram correspondidos, pois, “encostavam o bonde na parede”, isto é, velocidade máxima, e pulavam com primoroso salto de ‘balet’. Esses ‘pongadores’ receberam o nome de paraquedistas e existiam os “queimadeiros” fardados com caixas cheias de queimados (bombons) e chocolates que subiam no estribo sem derrubar um bombom e vendia seus produtos aos passageiros”.
O livro é a tradução da história viva da cidade do Salvador por quem participou dela, em parte, e na outra parte exigiu do autor uma demorada pesquisa no IGHB para fornecer dados os mais fidedignos possíveis. Muita coisa, no entanto, Geraldo presenciou, viu, participou, pois, usava os bondes, frequentava os campos de futebol, e era criança quando as picaretas do progresso derrubaram a Sé Primacial. Além do que, foi amigo de muitos espanhóis (galegos, originário da Galícia, Norte da Espanha) e cliente de armazéns e padarias.
Conta Geraldo sobre a derrubada da Sé Primacial: “Ainda tivemos oportunidade de conhecer a igreja da Sé, não como se estivéssemos a nos despedir da histórica catedral, mas apenas passando em seu entorno. Não reparamos se estávamos em torno de um imóvel velho. Salvo os palacetes do Campo Grande, Graça, Barra, Avenida Sete, enfim a cidade inteira era assim, com ruas estreitas e tortuosas. Na Freguesia da Sé, em 1930, existiam 38 ruas com 952 prédios”.
Segue: “Algumas vezes contornamos a igreja da Sé, tendo vários acesos pela Ladeira do Aljube, Ruas da Misericórdia, do Colégio, do Arcebispado, onde na porta da “Circular”, iríamos tomar o bonde de Santo Antônio, único da linha da Baixa dos Sapateiros que chegava ali, enquanto todos os outros dessa linha retornavam da Praça do Elevador Lacerda para descer a Ladeira da Praça. Era uma distinção esse privilégio”.
“Uma das curiosidades que nos chamaram a atenção foi, em um dia que saímos com meu pai da Rua do Bispo, nos bater de frente com o cinema São Jerônymo, em cuja fachada estava um grande cartaz com o retrato de Buck Jones. Nunca tivemos oportunidade de entrar no seu recinto, mas a fachada nunca me saiu da mente. Ocupava o lugar em que hoje existe o Cine Excelsior. () Se estivéssemos no bonde de Santo Antônio, desviaríamos da igreja para a pequena pracinha Dom Romualdo, e daí, num ziguezague curto, porém intenso, chegaríamos as ruas do Colégio, Guedes de Brito e estaríamos do outro lado do templo () Contudo, se estivéssemos andando, em vez do bonde, rodaríamos pela frente, passaríamos por baixo de um passadiço que servia para o arcebispo atravessar dos seus aposentos para o corpo da vestuta catedral”.
Veja, portanto, quanta informação de quem andou pelo local a pé até o Parque D. Isabel, pequena praça gradeada e com banquinhos que existia em frente da igreja cuja fachada era voltada para a Baía de Todos os Santos. Sobre o futebol lembra o pioneirismo de Zuza Ferreira, em 1901, para introduzir o futebol em Salvador, como esporte, ainda no Campo da Pólvora, depois no Rio Vermelho sendo fundada a Liga Bahiana de Desportos Terrestres, em 1913, já com as presenças do Vitória, Ypiranga, Botafogo, Associação Atlética da Bahia, Sul América, Fluminense e Bahiano de Tênis.
O capítulo final do livro dedica aos galegos contato que tivera desde a escola primária e os cadernos escolares que adquiria no Armazém Tapiranga, “localizado nas vizinhanças da Igreja dos Perdões” e relacional entre 1920/1960 nomes e empresas de galegos na cidade. O livro, pois, é uma preciosidade e se vê quer “conhecer a Bahia, nego” como dizia Dorival Caymmi está na hora de conhece-lo. Eu adorei e recomento. Tem uma quantidade e qualidade de informações valiosas reunidas num único volume.