Novela encantadora que se passa em Salvador dos anos 1920 criatividade da pena do historiador Luís Henrique Dias Tavares
O ex-professor Luís Henrique Dias Tavares é mais conhecido por ser o autor do clássico livro “História da Bahia” que, imagino, muitos dos nossos leitores já leram. Esse ilustre personagem, comunista baiano histórico, um dos fundadores do jornal “O Momento” e cronista do ex-Jornal da Bahia fundado pelo trio João da Costa Falcão, Zilteman Oliva e Milton Cayres de Brito e do “Momento”; ex-acadêmico da Academia de Letras da Bahia, pesquisador e integrante de vários movimentos culturais de Salvador era também novelista e escrevia obras de ficção.
Não representava o seu forte. Historiador, como sabemos, se apega aos documentos, as pesquisas, aos arquivos e Luís Henrique foi durante muitos anos chefe do Arquivo Público da Bahia e se dedicando às obras de conteúdo documental não havendo tempo para a ficção. Mas, quem tem a escrita na veia – como se diz entre os literatos – o que cai na rede é peixe e o profissional das letras navegava bem em vários estilos.
Vamos comentar neste final de semana um livro raro de Luís Henrique Dias Tavares que encontrei num sebo do bairro do Canela, Salvador, intitulado “Nas Margens, no leito seco” (EDUFBA, 89 páginas, 2013, coleção Crônicas Brasileiras, R$30,00 no sebo e R$40,00 em Estante Virtual – usado), uma novela com prefácio de Aleilton Fonseca e posfácio de Consuelo Novais Sampaio que é uma obra encantadora.
Eu mesma, confesso, nunca tinha lido um texto de ficção do mestre Luís, permita-me usar essa expressão que foi utilizada por Novais Sampaio no posfácio, e achei deliciosa, bem baiana, autenticamente baiana, passada entre Salvador e Ilhéus, com personagens populares e da aristocracia do cacau.
Aleilton comenta que “os fatos narrados se passam nos anos 1920, entre Salvador e Ilhéus, envolvendo personagens típicas daquela época de vida social, religiosa e mundana rica em situações prosaicas, capazes de alimentar enredos mais bizarros e extraordinários. O narrador, homem idoso que se declara “hoje um velho procurando lembrar fatos e pessoas ao longo desta minha vida”, retorna o fio de sua trajetória em plena adolescência, na passagem para a vida adulta, quando, ainda sob a proteção da mãe viúva, se inicia no trabalho como jornalista e conhece o sexo numa casa de prostitutas como eram o costume e a norma”.
E é até provável que o autor como cronista que foi de jornal no centro de Salvador e como os demais colegas que, na vida real, labutavam em “A Tarde”, O Momento”, “Diário de Notícias”, etc, tenha vivido essa experiência nos inferninhos e casas das madames no São Bento de Baixo, hoje, Carlos Gomes, e nos esconderijos da Barroquinha, onde, em parte, a novela se passa.
Luis Henrique, portanto, ambienta sua obra num local que conhecia bem e também os teria frequentado como militantes comunista e jornalista, além de conhecer a sua raiz, a sua história, como pesquisador e historiador. Seu olhar doce e quase melancólico, criativo e reservado, se aflora na sua ficção que é uma arte literária mais complexa, porém, dado seu saber em história poderia facilitar narrativas.
Seria, assim, a sopa no mel para escrever a sua novela. Mas, aí é que a porca torce o rabo porque a ficção não é crônica; nem história e o escritor tem que mostrar criatividade e cativar os leitores com surpresas e engenhos que raramente existem na vida real, apenas se assemelham os ambientes. Os personagens, sim, precisam ter “vidas próprias” e quando mais dessemelhantes melhores.
E É isso que Luís Henrique fez nesse “Nas margens. no leito seco” – título até sem atratividade, porém, sutil, enigmático e os leitores só se aperceberão disso quando estiverem no meio caminho andado da leitura, no idílio amoroso de Juca e Gina, nascido na casa de sexo da madame Janette, ambos sem eira; nem beira e que se tornam afortunados da noite para o dia graças a ação de um coronel do cacau (Ramiro) freguês do lupanar.
Era, assim, (como foi) muita sorte de personagens serem contemplados com uma propriedade e dinheiro vivo por um coronel do cacau e isso aconteceu com papel passado e mudança para a cidade de Ilhéus, a viverem felizes (a também angustiados, sobressaltados) para sempre, dotes caídos do céu a partir de uma casa de prostituição e um leilão de cabaço (virgem). Juca, insistindo em voltar para Salvador e ser jornalista como fora seu pai e resgatar a mãe que vivia como freira desgostosa com a sua atitude de casar-se com uma desconhecida.
E, nesse delírio, Juca e Gina sempre descrentes de que aquela “roda da fortuna” havia se tornado uma realidade, e o autor maneja bem essa contradição para que os leitores fiquem apreensivos, fiquem atentos e acompanham a narrativa com prazer, mas tudo vai dando certo, o coronel Ramiro cumprindo sua palavra integralmente e passando-lhe a fazenda e maços de dinheiros, adotando-os e casando-os de papel passado.
Ora, tal enredo teria que haver surpresas com houve, com o coronel falecido o seu genro que vivia na Europa com a sua filha artista, insubmissa (renunciada da fortuna e dedicada à sua arte) volta ao Brasil sozinho dizendo-se dono da herança do coronel. Há apreensões, cenas de suspende, mas, nada que acabar numa sala de um tribunal de Justiça.
Nesse momento o casal Juca e Gina fogem para a Itália após passar no banco e levarem consigo parte desta fortuna e tudo se finda num leito seco (de um rio), como interpreta o título, que é a morte de Gina, a essa altura, em Florença, na Itália, donde viera para “fazer vida na cidade do Salvador na casa da madame Janette” e onde é tragada pelas águas do Rio Arno e Juca caminha às suas margens apenas como um velho de barbas brancas.
Claro, na interpretação emanada do autor aos leitores, o ato de Juca (velho de barbas brancas às margens de um rio na Europa) simboliza o pensar e passar da vida, desde um tempo inicial como “foca” - jornalista principiante - do “Correio de Notícias” que teve a missão dada pelo redator Mário Campos, amigo de seu falecido pai, também jornalista, de “cobrir o leilão de cabaço na casa da Madame Janette”, e “trazer tudo anotado”, a graça da “roda da fortuna” que o deixou rico de uma hora para outra; e o fim da sua trajetória, sem amor, sem filhos e sem cumprir a sua missa principal de ser um grande profissional de imprensa como fora seu pai.
Confesso que fiquei admirada com a leveza de sua pena nesse texto, a baianidade dos diálogos, o cenário da velha Bahia mundana da Salvador em seu centro histórico mais amado, da alma dos seus personagens, enfim, uma novela admirável, encantadora.