Jovem inglesa a beira da morte busca novas vidas através dos livros da Biblioteca da Meia Noite
A literatura sempre nos surpreende sobretudo quando um livro tem um texto criativo, inovador e contemporâneo, século XXI, sem remeter a nada do que já li em clonagens ou semelhanças que nem sempre são aleatórias, mas, cópias mal elaboradas (ou até boas) de temas que já foram tratados.
Quando, então, acompanhamos o texto de um livro que nos surpreende, obra de linguagem moderna, solta, bem fundamentada com citações emblemáticas do Universo Paralelo, da Física Quântica, das vidas que são muitas e múltiplas, da morte, da psiqué e selfs distintos e intricados como num jogo de xadrez, caímos o queixo.
Assim se deu comigo ao ler o livro do inglês Mutt Haig intitulado “A Biblioteca da Meia Noite” (Editora Bertrand Brasil, RJ, 2024, 306 páginas, tradução de Adriana Fidalgo, capa Leonardo Iaccarino, R$43,70 Amazon) que o autor dedica a todos os profissionais de saúde e aos cuidadores e aborda as múltiplas vidas da personagem Nora Seed ditadas por uma biblioteca de livros verdes e as orientações de uma bibliotecária que, nós, os leitores, não sabemos se robô ou uma humana.
O livro é chocante. Não que haja sangue, mortes, cenas inusitadas de suspense ou algo que possa cativar o leitor nessa direção; e sim pela criatividade do autor em manejar a vida de Nora, uma jovem de 35 anos, talentosa, com família bem estruturada, bons projetos em andamento, mas uma colecionadora de insucessos, de tristezas, de infortúnios. Dessas pessoas que, por mais que se esforcem, mesmo tendo um bom caráter, excelente esposo, filhos, situação financeira estável nada parece dar certo.
É nesse ambiente onde, na real, milhões de mulheres no planeta Terra se encontram, onde dúvidas assaltam seus pensamentos, onde mudanças de vida raiz ocorrem, separações, desilusões, experimentos voltados para o Devocionismo religioso prosperam, etc, etc, que Haig põe sua personagem numa misteriosa biblioteca, enorme, em Universo Paralelo, repleta de livros, e comandada apenas por outra mulher, a Sra. Elm, uma velha conhecida de sua vida raiz, bibliotecária na escola em que ela estudou, porém, agora, noutro mundo, noutro universo, lhe abrindo as portas para ter novas experiencias de vida a serem ditadas a partir das primeiras leituras do “Livro dos Arrependimentos”.
Isso não significa dizer que Matt Haig tenha feito um livro comercial (já vendeu 9 milhões de exemplares) para um público potencial. Não creio nisso, embora as editoras trabalhem com essa perspectiva de marketing, o que, em certo sentido, faz parte do labor dos editores, pois, sem vendas dos seus produtos não se sustentam.
Mas, mesmo que tenha sido nessa direção, com alvo premeditado (as mulheres em situação de desespero – e o que mais existe no planeta são pessoas em busca de novas vidas ou rearrumações daquelas que consideravam perfeitas e não deram certo - o livro é muito bom, e o mérito maior do autor é exatamente fazer com que as prateleiras da biblioteca se movam (imagens do Multiverso) e chegue às mãos da personagem principal um livro e a indicação para uma nova vida.
E o autor como um passe de mágica transporta a personagem (Nora) de Bedford para uma biblioteca esquisita e daí para um pub no Condado de Oxfordshire, exatamente para experimentar essa nova vida tentando, com isso, tirá-la do sufoco em que vivia à beira da morte, com poucas horas antes de morrer de sua vida original, a de raiz.
E vai, ao longo do livro, porque a personagem não rearruma a vida preciosa, a ideal, a prazerosa, logo no primeiro lugar em que é levada e serão inúmeras experiências nesse jogo vida-morte-vida, que é um tema recorrente na literatura, porém, neste caso da biblioteca nunca tinha lido algo tão diferenciado e repleto de surpresas e criatividades extremas.
Nora, sempre que uma nova vida, em lugares distintos – até no Brasil veio parar, na cidade de São Paulo – não dá certo o autor a devolve a biblioteca e os leitores que ficam imaginando que em cada país ou local, sim, ela iria encontrar o caminho da felicidade, se surpreende quando o autor leva a personagem a satisfações quase plenas, porém, um deslize, um mal estar, uma lembrança, faz que que tenha uma recaída e retorne a biblioteca.
Ademais, o autor, não a coloca (Nora) em cada nova experiência como uma desamparada, uma desconhecida, e sim como familiar, amada, querida. E, portanto, até em tese e aos olhos dos leitores, o novo desembarque daria, sempre, bons frutos. E, aparentemente, dá. Porém, tropeça em empecilhos e retorna à estaca zero. E as horas para sua morte real vão passando no início 5 horas e já são 4 e diminuem para 3 e assim por diante.
Vejamos um trecho do livro: “Você já se perguntou alguma vez ‘como eu vim parar aqui?’. Tipo você está no meio de um labirinto, e totalmente perdida, e é tudo culpa sua, porque foi você que pegou cada um dos desvios? E você sabe que existem muitos caminhos que poderia ter lhe ajudado a sair, porque você houve todas as pessoas do lado de fora do labirinto que ao conseguirem passar por ele, e elas estão sorrindo e gargalhando. E as vezes as vê de relance através das cercas vivas. Uma silhueta fugaz entre as folhas. E elas parecem tão felizes por terem saído, e você não se ressente delas, mas de si mesma, por não ter a mesma capacidade que elas tiveram em achar a saída? Já? Ou esse labirinto é só para mim”.
Essa foi a penúltima postagem atualizada de Nora antes de se ver entre a vida e a morte. A seguir, o autor a coloca na Biblioteca da Meia Noite diante da enigmática Sra. Elm.
Sobre a nova vida em Oxfordshire diz Nora: - Foi diferente do que imaginava.
- É difícil prever, né. Sei muito sobre o hoje. Mas não sei o que acontece amanhã.
- Por que você não pode me dar uma vida que sabe que é uma vida boa?
- Não é assim que esta biblioteca funciona. () É uma biblioteca de possibilidades. E a morte é o posto da possibilidade. Entende? – diz Elm se entregando o book verde “Minha Vida”.
E quando Nora abre o livro é transposta para a Austrália onde vai experimentar um novo modelo de vida.
Creio que expliquei aos nossos leitores o enredo básico do livro e serão muitas vidas que Nora experimentará, ida e vindas à biblioteca (que será consumida em chamas), até o final. Não diria que seja um final feliz ou a obtenção do êxito da felicidade, até para não tirar o prazer da leitura de quem vai apreciar as páginas escritas por Matt Haig.
Diria que é como um jogo de xadrez, assim começa o livro e assim termina, uma luta, uma batalha, uma inquietação, um exercício mental, cada qual com seu labirinto e o autor mostra em sua mensagem mais profunda que cada pessoa deve, por que não? Se mexer, se movimentar e ter várias vidas quando tudo pode parecer perdido.