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Rosa de Lima

ROSA DE LIMA COMENTA LIVRO "IDENTIDADE E VIOLÊNCIA", DE AMARTYA SEN


Bem, em resumo, diria que, “Identidade e Violência” contém informações valiosas, uma erudição própria de um autor que é professor de economia em Harvard
24/11/2023 às 12:06
     Um dos temas mais complexos para uma abordagem em literatura é a identidade. Hoje, mais do que nunca, presente nos coletivos políticos de forma irracional (sobretudo no Brasil) tentando enfiar goela abaixo pontos de vista que que você discorda, que você repudia, mas os identitaristas acham que seu saber é o que vale e deve ser seguido, abraçado, louvado e endeusado; e também nos campos religioso e étnico, como presenciamos no conflito entre o grupo terrorista Hamas x Israel, em curso, com milhares de mortos e sangue derramado.

O que vamos comentar em literatura para o BJÁ é o livro do indiano Amartya Sen intitulado “Identidade e Violência” (Editora Iluminuras/Observatório Itaú Cultura, 2015, tradução de José Antônio Arantes, 205 páginas, Amazon, R$70,56), economista prêmio Nobel de 1998, professor de Harvard, e que aborda neste ensaio filosófico dividido em nove capítulos, a percepção de que a violência decorre de ódios ancestrais e do sentimento permanente entre o Ocidente e o Antiocidente. 

O livro foi escrito bem antes do atual conflito entre Hamas x Israel, embora já existisse de forma latente há muitos anos. E esse conflito entra no contexto e é abordado no capitulo referente as “filiações religiosas e a história muçulmana”, porém, não é o fulcro central do livro cuja tessitura é mais ampla entre os mundos ocidental e oriental. Nós, brasileiros, que estamos acostumados e ambientados na cultura do Ocidente, em geral, desconhecemos aspectos mais relevantes da cultura do Oriente e, até por isso, menosprezados alguns desses aspectos, como a matemática, que foi aprofundada no mundo árabe e foi abraçada e copiada pelo Ocidente, em parte.

  Diz Sen: “De fato, o uso cada vez mais comum de identidades religiosas como o principal – ou único – princípio de classificação das pessoas do mundo levou a erros grosseiros da análise social. Houve, em especial, uma grande perda de compreensão na não distinção entre as várias filiações e lealdade de uma pessoa que por acaso é muçulmana e sua identidade islâmica em especial. A identidade islâmica pode ser uma das identidades que a pessoa considera importante (talvez até crucial), mas sem por isso negar que existem outras identidades que também possam ser significativas. O que muitas vezes se chama de ‘mundo islâmico’ tem, evidentemente, uma preponderância de muçulmanos, mas diferentes pessoas que são muçulmanas, podem variar bastante, e de fato o fazem, em outros aspectos, como valores políticos e sociais, objetivos econômicos e literários, envolvimentos profissionais e filosóficos, opiniões sobre o Ocidente e assim por diante”. 

   O escritor indiano denuncia a violência da ilusão identitária e o cativeiro em que se transformou a cultura, um confinamento civilizacional, e destaca que é importante entender a identidade de cada pessoa e garantir a esta pessoa (e a todos os outros) liberdade de pensamento e de ações, quer sejam políticas; ou no campo profissional.

   “Eu posso ser, ao mesmo tempo um cidadão asiático, um indiano, um bengali com antepassados da Bangladesh um residente nos Estados Unidos ou na Inglaterra, um diletante em filosofia, um escritor, um sanscritista, um adepto convicto do secularismo e da democracia, um heterossexual, um defensor dos direitos gays e lésbicas, com um estilo de vida não religioso”, numa amostra das diversas categorias de um ser, diz o autor, o qual se posiciona contra o que chama de reducionismo. Isto é, a suposição de que qualquer pessoa pertence somente a um grupo, quando, na realidade “cada um de nós pertence a vários”.

  O ensaio é complexo com subtemas extremamente atuais como as filiações religiosas e história muçulmana, ocidente e antiocidente, globalização e voz, multiculturalismo e liberdade, a violência da ilusão, o confinamento civilizacional e a liberdade do pensamento. E o mais relevante nesse contexto é que, a análise é feita por um asiático ocidentalizado, nascido na Índia com formação em Cambridge e atuação profissional nos EUA e no Reino Unido, professor em Harvard, e que o faz a partir de um capital (cultural) acumulado sem medo, sem se prender ao politicamente correto.

   O fato, por exemplo, de defender a identidade como múltipla e não solitária e citar que a violência decorre de ódios ancestrais acumulados, Sen aborda um vespeiro no que diz respeito ao sentimento da solidariedade global e de como, na prática, muitas pessoas vivem distantes de sua pátria de origem. Esse é um tema de extrema complexidade até no que vemos, nos últimos anos, migrações de africanos para a Europa, de ucranianos e palestinos para a Ásia, Europa e América.

   No futuro, pensemos assim, essas pessoas passarão a ter identidades múltiplas ainda que possam conservarem alguns aspectos da cultural ancestral dos seus países.

   E aí vem uma outra questão abordada pelo autor: “Por que homens e mulheres de uma parte do mundo deveriam se preocupar com o fato de que pessoas de outras partes do mundo vivem sob condições ruins e não existe um sentimento de participação global e interesse algum na injustiça global? 

    O autor, por posto, entra no campo da globalização econômica vista, na atualidade por muitos segmentos considerados ativistas, ditos progressistas, como uma maldição do Ocidente, o que ele não vê, nem necessariamente ocidental (a globalização) nem uma maldição. 

   E, não custa lembrar aos nossos leitores, que a rota da seda na China e na Caxemira na região norte do subcontinente indiano, hoje, entre Índia-Paquistão e China já praticava um comércio de troca global quando o Brasil, EUA, Canadá e outros países da América Latina espanhola sequer existiam. E, também só lembrando, o achamento do Brasil, a viagem de Pedro Álvares Cabral era (como foi no final) para as Índias Ocidentais, em busca de riquezas.

   Amartya Sen destaca que “o diagnóstico errôneo de que a globalização de ideias e práticas deve ser rechaçada porque acarreta, necessariamente uma ‘ocidentalização’ exerceu papel bastante regressivos já no mundo colonial e pós-colonial e estimulou uma visão regionalmente estreita e também debilita do avanço da ciência e do conhecimento através de fronteiras. De fato, não só é contraprodutivo em si mesmo como também pode acabar sendo uma boa maneira da sociedade não ocidental prejudicarem a si mesmas – e até mesmo seu mais precioso patrimônio cultural”.

    Bem, em resumo, diria que, “Identidade e Violência” contém informações valiosas, uma erudição própria de um autor que é professor de economia em Harvard e consultor em Cambridge, portanto, uma leitura que exige certo conhecimento da história mundial, mas nada que seja assustador e não posse ser compreendido por leitores de conhecimento médio. Pelo contrário, o que expõe nos seus textos, é um reforço importante para aprimorar seus conhecimentos.