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Rosa de Lima

ROSA DE LIMA comenta livro PORTO CALENDÁRIO, de Osório Alves de Castro

Um clássico da literatura baiana escrita pelo alfaiate de Santa Maria da Vitória, Osório Alves de Castro
29/01/2018 às 19:49
Uma história romanesca onde o narrador se posiciona sem direcionar o texto para influenciar a cabeça dos leitores deixando-os à vontade para que façam as suas interpretações, tem um valor inestimável. Obriga-os a ter uma maior atenção, reler trechos e revisar conceitos emitidos pelos personagens num exercício permanente e cuidadoso. Não é tarefa fácil. 

Exige-se cuidados no acompanhar as narrativas com uso de linguaguem cifrada, codificada com termos regionais da região do Rio São Francisco, dos sitios encantados de Santa Maria da Vitória, às margnes do Rio Corrente - afluente do Velho Chico, de Bom Jesus da Lapa, da mundana Barra e dos coronéis que habitavam essa região da Bahia no Pilão Arcado, no Sento Sé, no Remanso e mesmo na Chapada Diamantina, e da gente simples que vivia sob esse mandonismo.

O livro Porto Calendário (ALBA/EGBA, 368 páginas, 2017), escrito por Osório Alves de Castro, romancista alfaiate e militante do Partido Comunista, ele próprio um retirante nascido em Santa Maria da Vitória no século XIX e falecido em Itapecerica da Serra, em 1978, o homem que "costurava as palavras" e viveu no Rio, SP, Bauru, Lins e Marília, traz esse enredo: de como conviver nesse mundo do atraso, do sofrimento; e ou mudar-se para o eldorado nacional, São Paulo, em busca de melhores dias, de uma vida mais digna. 

O leitor precisa ter muita dedicação para poder compreender as leituras de vida dos personagens, suas vivências, seus modos de encarar o mundo, quereres e poderes. No âmago, o autor narra a vida numa região do Rio São Francisco, com gente pobre que tem o apego à sua terra natal e que também sonha, algum dia, em ter uma vida melhor e deixar aquele mundo de injustiças e do atraso para trás. Um espaço terrestre, como diz o autor, em que se conhece os cidadãos pela gordura dos cachorros, "bom pai; filhos assim". Cachorro de rico, cevado; cão de pobre, osso puro.

Na Santa Maria da Vitória da época de Osório era-se "o coice do mundo" e ao mesmo tempo o vale do Rio Corrente representando uma "porta aberta para o destino dos moços". Diz o autor, mal os meninos engrossavam a voz escreviam com carvão nas paredes da igreja: "No ano que vem, caminho de Ribeirão Preto tem". Ou seja, sem perspesctivas futuras salvo ser comerciante de rapadura e/ou barranqueiro, o futuro estava longe dali, em São Paulo, nas terras do café e da fartura.

Para embasar a sua narrativa, o autor conta-nos a trajetória da familia de Pedro Voluntário da Pátria, ex-revolucionário da Guerra do Paraguai, um ABC de astúcias, e usa uma linguagem que se assemelha ao palavreado de Guimarães Rosa em "Grandes Sertões - Veredas", isso de forma pioneira. Em carta de 21 de fevreiro de 1953, Guimarães o saúda: "Só uma viagem ao interior de Minas é que retardou o recebimento a essa resposta à sua carta de 5-1, que arredondou minha alegria, sendo valioso acontecimento. Companheiro proclamado, amigo "prévio", pessoalmente ainda não conhecido, mano velho, sãofranciscano, barranqueiro. Você já estava sob a minha espera; desde a carta, a outra, a notável epistola aos incréus citadinos e gentios não-franciscanos, esplêndio e explosivo sumário das coisas e gentes graves de lá, e forte documento".

  As narativas das gentes graves de lá do São Francisco ganham corpo, ganham movimento e uma sabedoria imensa na pena de Osório que descreve os personagens com uma força impressionante e suas descrição da virada do século XX e a chegada de mais uma filha é simplementes genial. 

- O rancho negro silencioso, palpitava nos tições acesos, recobertos de cinza estalando. Benzinha começou a gemer. A voz de mãe Maria dos Reis, a parteira resmungou uma conversa surdina. O velho ficou escutando. Um grito de recém nascido corria pela calada avisando: Tens mais uma vida para cuidar. - Doze bocas para comer, meu pai do céu e Pedro sentiu vontade de chorar. 

Enquanto isso, na cidade, ecoavam ruidos e pipocos dos fogos de artificio, tiros de clavinotes e rifles, os coronéis faziam os jagunços dispararem, a filarmônica tocava e era o ano novo chegando, o tal século. Um marco. O autor contextualizava sua história conduzindo os leitores para a virada do século, a chegada do século XX, como se isso representasse uma possível mudança para melhor na vida das comunidades sanfranciscanas. E a barca que mestre Cornélio construia para Fernando Sessenta, a maior nunca vista no São Francisco, era sinal desses novos tempos. 

Um dos calafates, Camilo Donato, ajuizou: - Que venha logo o tal século. Deve ser coisa parecida com eleição. O diálogo entre Pedro Voluntário, Anselmo Cambão, Timóteo Divino, Aristes Estrela e Flávio Rocha, operários da barca é um retrato do pensamento local: Adiantou Flávio Rocha: - No meu entendimento, o século Vinte é como a força. Ponha a força nos serrotes, nas enxós e a madeira vai se desdobrando. Depois vem a quilha, depois o cavername, o tabuamento, até que a barca ficar pronta para descer rio abaixo, cheia de rapaduras e mantimentos. 

E os comparativos com o barco Saldanha Marinho, ferro, fogo e água, com máquinas, representava a diferença.

Estaria aí a compreensão do novo século entre o artesanato da barca da enxó e o navio de ferro e máquinas que navegava igual a peixe. No meio disso tudo, a superstição, a feitiçaria, a crença no divino e o sonho de também colocar uma máquina, um motor, para que as barcas do sal e da rapadura também navegassem como peixe, iguais ao Saldanha.

O livro é magistral. As barcas representavam o poder do comércio, o vai e vem das mercadorias, o poder dos coronéis que também poderiam carregar nelas tropas e jagunços; representavam a Justiça porque nelas poderia chegar o juiz de direito das comunidades, o sargento da policia, as tropas do governo, a medicina, a modernagem. 

O autor mescla todo esse caldo de cultura em Porto Calendário, como se os dias passassem sem mudanças e os portos ribeirinhos com seus burburinhos de gentes, seus mestres de navegação, seu apitos, suas chegadas e partidas também representassem uma esperança.

A vida dos coronéis e a disputa entre eles, sempre ao lado do governo ou quase sempre, são extremamente bem retratados no livro. E as pessoas simples gnham uma dimensão extraordinária com seus nomes típicos locais: Hildo Bunda de Ferro, Sargento Bim-Bim, Chico Leoba, coronel Francolino, Zé do Bico, Cabo Selado, Tia Gatona, Soterão, Sá Quitéria e outros.

O livro foi escrito em Marília, SP, onde Osório possuia a Alfaiataria Rex, trabalhado entre os anos 1942 e 1945, e se o sertão do São Francisco criou o boi, o mulato, a rapadura, o vaqueiro, o jagunço e o beato também deu-nos esse escritor de mão-cheia, desconhecido do grande público baiano, ganhador do Jaboti de 1961, agora resgatado pela ALBA com a reedição de Porto Calendário, livro de grande saber, para caxumbar, cubar de cima para baixo; e de baixo para cima, uma preciosidade.

A descrição do autor sobre a disputa de duas barcas no São Francisco, cada qual querendo chegar ao porto mais próximo primeiro que a outra, é também a narrativa do amor próprio, da força do homem, do orgulho de ser remeiro e navegante, toda uma realidade fantástica de encher os olhos de qualquer leitor.

E se há um retrato fiel da jagunçada, nada melhor do que esreveu Osório: - Jagunço é como cobra; o veneno vem não se sabe de onde, mas vem e mata". 

É isso, todo o universo do sertão do São Francisco está em Porto Calendário.