Política

TEXTO DEPOIMENTO DE AÉCIO PAMPONET SAMPAIO SOBRE ROBERTO SANTOS

Tudo isso é pouco para definir um homem que é e sempre será um exemplo para uma Bahia de memória, gratidão e decência.
Tasso Franco , da redação em Salvador | 10/02/2021 às 20:18
Aécio Pamponet Sampaio
Foto: Facebook

DIGNIDADE
Para Maria Amélia Santos
O que resta de grandeza para nós são os desconheceres.
MANOEL DE BARROS

Não quero fazer comparações, apenas expresso a minha experiência: ele foi o homem público mais íntegro com quem já convivi.

E olhe que é tempo que dá para ir a Marte de teco-teco...

Naquele início de 68, fomos apresentados, no velório de Isaías Alves (ou teria sido o de Magalhães Neto?...), no salão nobre da antiga Faculdade de Filosofia, pelo diretor Joaquim Batista Neves.
Ele, ainda jovem e elegante, tinha assumido há pouco a Reitoria da UFBA. Eu, imberbe, calouro e comunista convicto, tinha acabado de ser eleito presidente do Diretório Acadêmico de uma faculdade com quase dois mil alunos e de uma relevância político-estudantil reconhecida.

Em tempos de confronto direto e violento com o regime militar, era quase um sacrilégio dialogar ou se aproximar de qualquer autoridade, todas consideradas símbolo da ditadura. No mínimo, era uma demonstração de “fraqueza ideológica”.

Estava em pauta a Reforma Universitária, que recebia o nosso repúdio, por ser “uma encomenda” do convênio MEC-USAID para enfraquecer o movimento estudantil.

Depois desse nosso rápido e formal encontro, Batista Neves transmitiu-me o convite para uma audiência no seu gabinete da Reitoria. Ir ou não ir?

Pelas boas regras da época, atender ao convite era fornecer munição à oposição; ignorá-lo, sectarismo e descortesia.

Fui.

Depois de minutos de conversa amena, revelou a razão: tinha lido uma entrevista minha no Jornal da Bahia, contra a Reforma Universitária, e desejava-me nas reuniões do Conselho Universitário, onde se discutia o anteprojeto, como segundo representante dos universitários. O primeiro era o presidente do DCE (Diretório Central dos Estudantes), João Almeida.

No Conselho Universitário recebi um polimento de educação e de convívio democrático. Foi, também, uma oportunidade para expressar, de forma direta e firme, a oposição dos estudantes. Mesmo sem direito a voto, fui ouvido por todos com respeito, apesar de minhas contundências e excessos verbais.

Ficara-me a lição do querido e insuspeito Perseu Abramo: “Esse reitor não é um reacionário...”
Nesse mesmo ano, dois fatos ocorreram para reafirmar a nobreza do caráter de Roberto Santos:
1.     A invasão da Universidade pela Polícia Militar, por ordem da VI Região Militar do Exército, para acabar com a greve de ocupação, prendendo suas principais lideranças.

Alta madrugada, ele foi à cela do Quartel da Guarda Civil, nos Barris, para nos dar a garantia de que, ao amanhecer, iniciaria gestões para que todos fossem soltos imediatamente, o que realmente aconteceu.
Mas, ainda assim, até hoje, há maledicentes que o acusam, por ouvir dizer, de ter partido dele a ordem para a invasão das faculdades ocupadas pelos estudantes.

Depois do AI-5, quando fui impedido de estudar, jamais deixou de me receber em seu gabinete, além de cogitar junto a VI Região Militar a remota perspectiva de anulação de minha cassação.

2        Deixou o seu gabinete para negociar a saída pacífica de centenas de estudantes que correram para o Salão Nobre, a fim de escapar da implacável perseguição policial, com soldados babando de raiva na porta de entrada da Reitoria e insistindo em invadir para nos retirar de lá com violência.

O reitor conseguiu fazer um acordo e as forças policiais foram estacionadas no Campo Grande, enquanto os estudantes saiam sem manifestações de protestos.

Salvou-nos das pancadarias, que pareciam inevitáveis.

Depois, seguimos rumos diferentes.

Ele foi presidir o Conselho Nacional de Educação, em Brasília, e eu, impedido de estudar, fui cobrar dívidas de um laboratório farmacêutico pela venda de medicamentos às farmácias de Salvador, de paletó, gravata e pasta 007 na mão, até conseguir vaga de jornalista esportivo na Tribuna da Bahia.

Fui reencontrá-lo já governador indicado para suceder ACM. Nessa época, por seleção, eu trabalhava na Secretaria de Planejamento do Estado.

Indicado pelo seu secretário de Planejamento, o economista competente, honesto e trabalhador Edson Pitta Lima, ele me nomeou diretor técnico do Iuram (Instituto de Urbanismo e Administração Municipal).
Pitta Lima e Roberto Santos garantiram-me, corajosamente, na função, desconhecendo todas as pressões e determinações em contrário dos órgãos de segurança.

Então passei a conhecer mais de perto um homem culto, educado, de temperamento cordato e de trato ameno, incansavelmente trabalhador, firme e ponderado, com uma profunda visão estratégica e humanista da Bahia e da administração pública, que dispensava um tratamento cavalheiresco até aos seus mais ácidos críticos e adversários.

Demonstrou uma capacidade incomum de participar, em detalhes, de todas as ações setoriais de seu governo. Periodicamente, reservava um dia para ouvir e tomar parte em discussões técnicas sobre tudo que ocorria em cada secretaria e em cada um de seus órgãos setoriais.

As quartas-feiras eram reservadas a atendimento aos prefeitos, sem distinção partidária.

Realizou nos 417 municípios de então, numa gestão de quatro anos, sem discriminar ou retaliar. O balanço de governo “4 Anos Depois” é um documento fiel e uma fonte de pesquisa indispensável à análise daquele período.

Fui testemunha, também, da torpeza construída contra ele no episódio histórico dos cães contra Ulisses Guimarães, no Campo Grande.

Atribuíram-lhe a responsabilidade, desconhecendo o óbvio: governador nenhum, durante o regime militar, mandava nas Polícias Estaduais, que eram dirigidas por oficiais do Exército e subordinadas aos respectivos Comandos Militares Regionais.

Só os incautos ou mal-intencionados acreditaram ou acreditam nesta versão, de construção e origem bem identificadas.

Quando criei e sustentei divergências com “carlistas de esquerda”, incrustados na Seplantec e determinados a paralisar o governo, a fim de obter “credenciamentos” com o futuro governador, ele e o secretário Pitta Lima ficaram do meu lado e resistiram às pressões pela minha exoneração, que tinham articulações até dentro da Casa Civil.

Depois de sair do poder, andamos em paralelo na frente de oposições, ele no PP de Tancredo Neves e eu no histórico MDB, depois PMDB, de Ulisses, Montoro, Chico Pinto, Waldir Pires e tantos outros nomes da resistência democrática.

Quando saiu o “golpe” da proibição de coligações, para evitar a previsível derrota do partido do governo, deu-se a incorporação do PP ao PMDB e ficamos juntos, até a queda da ditadura.
Nossas visões ideológicas diferenciadas nunca foram um obstáculo ao nosso caminhar juntos pela democracia.

, transformada numa sólida amizade, pela qual sou grato e honrado.

Muitas vezes tive que ouvir, de correligionários, ironias como: “Você é gente boa, mas é robertista...

Ah, o tempo!...

Participei da sua empolgante campanha para voltar ao governo do Estado, em 1982, que foi, também, o prolongamento do embate contra a ditadura e contra a sua mais pura representação na Bahia, o carlismo.
Reitor, Presidente do Conselho Nacional de Educação, presidente do CNPq, ministro de Estado e deputado federal, jamais alguém ousou questionar sua decência e sua lisura de homem público, nem contestar o seu valor intelectual.

Mesmo aqueles que, politicamente, lhe devotaram desconfianças tiveram que se render às evidências do tempo.

Um dia, quando prefeito, ouvi da boca de seu arquiadversário e inimigo pessoal Antonio Carlos Magalhães a surpreendente confissão:

“Roberto é um homem de bem”.

Nas eleições de 1994, impelido pela política local e por gratidão pela ajuda que deu a Macajuba como ministro do Bem-Estar Social d do governo Itamar Franco, votei em Jutahy Magalhães, no primeiro turno. No segundo turno, apoiei Paulo Souto. Meus inimigos tinham conseguido a preferência de João Durval, com quem eu já vinha mantendo conversações, mas que escolheu ficar do lado oposto.

Aos que, distantes, não entenderam a minha opção, causei surpresas e indignações. Recebi críticas e injúrias. Tinha “traído a causa”, diziam uns; tinha me vendido ao governo, afirmavam outros.
Uma decisão cara e doída...

No dia seguinte, atendi ao telefone. Era ele, Dr. Roberto:

— Quanto a mim, fique tranquilo. Conheço o seu caráter...

Tudo isso é pouco para definir um homem que é e sempre será um exemplo para uma Bahia de memória, gratidão e decência.