Colunistas / Crônicas
Jolivaldo Freitas

Largaram Bom Jesus dos Navegantes na mão

Jolivaldo Freitas é jornalista e escritor
05/01/2019 às 10:03

A galeota Gratidão do Povo
Foto: Saltur
Quem tem alguma memória, resistiu ao tempo, lembra que os festejos para louvar Bom Jesus dos Navegantes eram aqueles que mais reunia gente de toda a Bahia no século passado. Numa época em que o turismo era algo incipiente em Salvador, mesmo sendo a mais velha cidade do país, a festa ficava cheia de gingos. Chegava, notadamente, gente de toda a Bahia, pois a festa começava no dia 31 de dezembro e só ia terminar praticamente na madrugada de 2 de janeiro. Começava num ano que se encerrava e terminava no outro que começava. A Festa da Boa Viagem era o maior Réveillon da cidade com milhares de pessoas.

A maioria já usava o branco – por influência da religião afro-brasileira – que era para atrair felicidade, garantir e paz e a harmonia. A Festa da Boa Viagem, por coincidência, de todas era a que tinha menos ocorrências policiais, ao contrário das festas da Conceição da Praia (talvez pela proximidade dos os bregas da Ladeira da Conceição e da Montanha) o de Santa Luzia (também próximo à zona do meretrício do Pilar) e da Segunda-feira Gorda da Ribeira (onde o pessoal era considerado pelos moradores de outros bairros como “porradeiros”).

A maioria que ia passara o Réveillon nas barracas, parques de diversões ou na areia da praia, dormia por ali mesmo, pois era grande a dificuldade em se encontrar de madrugada transporte público para voltar para casa e táxi era um objeto de desejo e não tinha tanto assim pela cidade, sendo que nas épocas de festas sumiam, pois, os felizes proprietários também tinham suas famílias para dar atenção.

E no dia primeiro do ano – que muita gente não lembra que é Dia da Paz Universal – a praia amanhecia tomada de fiéis que iam recepcionar a imagem de Bom Jesus dos Navegantes que aqui chegou no século XVII e foi quando tudo teve seu início. Mas, a vida de Bom Jesus dos Navegantes não é lá muito fácil, pois sempre enfrentou problemas, como aquela há quase 200 anos quando caiu uma tempestade tão avassaladora sobre a Baía de Todos os Santos que foi melhor não sair de casa.

Em 1890 a Marinha, como sempre fazia quando a embarcação que levava a imagem passava defronte ao Forte São Marcelo, decidiu homenagear, não com as 21 salvas de tiros de festim, mas com duas balas de canhão verdadeiras. Uma das balas quase afunda um navio norueguês cheio de bacalhau, foi um problema e os militares decidiram nunca mais se meter na procissão, nem mesmo com o pedido de políticos de gente da irmandade.

Mas no ano seguinte um comerciante providenciou um escaler e a procissão saiu e para o ano seguinte foi feita uma vaquinha e com o dinheiro do povo foi construída a galeota que levou a imagem no dia primeiro de janeiro de 1892. Era a Gratidão do Povo, que este ano foi impedida, de novo, de entrar no mar pela Marinha, pois está em estado de petição como se dizia antigamente. É bom lembrar que nas dificuldades enfrentadas pelo santo, no ano de 1972 um foguete atingiu a galeota que fez um rombo no casco e teve de ser rebocada com a imagem vindo em outro barco de socorro.

Era bonito de se ver a Procissão Marítima com centenas de saveiros e pequenas embarcações à remo, navio da Marinha de Guerra e embarcações da Marinha Mercante, além de lanchas e canoas. Embarcações vindas de todo o Recôncavo, das marinas e dos bairros como Ribeira, Plataforma, Itapuã, Amaralina e Pituba. Mas, o que se vê hoje é uma procissão com alguns gatos pingados, algumas dúzias de embarcações seguindo a galeota. E este ano nem galeota teve. E olha que Bom Jesus já livrou a cara de muito pescador, de muitos navegadores mal-agradecidos. Estão deixando o santo à deriva. Depois, vem um tsunami, correm para se queixar ao bispo.
Escritor e jornalistas: Jolivaldo.freitas@yahoo.com.br