Cultura

A ALMA DA SENHORA AVENIDA 7 (ÚLTIMO CAPITULO) UMA CAMINHADA DE 60 ANOS

A AVENIDA SETE foi a pioneira na mobilidade urbana de Salvador projeto implantado em 1015 e que mudou a vida da cidade
Tasso Franco ,  Salvador | 06/02/2025 às 10:52
Ilustração de Seramov
Foto: Seramov
      Tudo que tem começo tem fim. Assim acontece com os seres humanos, as plantas e até os monumentos. E os livros não escapam. Por mim seguiria escrevendo sobre a Avenida 7 mais capítulos que são infinitas as suas histórias, mas os leitores não gostam de enciclopédias e contento-me em encerrar essa obra no capitulo 40 mesmo sabendo que há muita coisa a ser narrada numa via que é a Senhora da Cidade – não a mãe original – mas aquela que é a alma, a essência, o espírito, a vida e a morte.

   O espaço transformador da Salvador colônia barroca para a contemporânea, da capital beata para a profana, da Bahia europeia com sua elite em linhos, chapéus, vestidos longos e sombrinhas francesas para a Bahia mestiça de batas e sandálias rasteiras, para uma cidade que abraça o século XXI nesses primeiros 25 anos sem perder todas as suas tradições mantendo viva alguns monumentos e sua história de pé ainda que mutilada aqui e acolá, e também renovada num movimento continuo que ninguém consegue parar.

   Saíram os carros e bondes elétricos inovadores quando de sua inauguração, em 1915, e hoje trafegam os ônibus, carros elétricos e patinetes; saíram as carruagens e burros que corriam no Corredor da Vitória e surgiram os teleféricos, os peares e os iates; desapareceram os ingleses, os portugueses e os italianos e os espaços foram ocupados pelos baianos; aposentaram-se os penicos, os urinós, as namoradeiras, as janeleiras, os mascates, os leiteiros, os homens do pães, os verdureiros, etc, etc, e surgiram os sanitários com ducha, os ofurôs, os técnicos em consertar celulares, as mulheres que tiram pressão, os vendedores de flores e acarajés.

   Em que outra avenida da cidade do Salvador pode-se encontrar um monge beneditino a andar pela rua ao lado de uma mulher usando biquini fio dental separando as duas popas da bunda? Que sítio na cidade da Bahia vê-se uma advogada de terno e ‘loboutin’ andando na rua e freira comprando bananas e verduras? Ou uma madame passeando com seu totó e carregando aquele saquinho de pegar coco e uma senhora que vende vestes para cães? 

   São muitos os populares que existem na Sete atual: o amolador de alicates, o pastor evangélico de almas desemparadas, a travesti que roda a bolsa, o cafetão, o pedinte, o batedor de carteiras, a massagista sex, a tricorista, o ourives, o vendedor de alfeles, os vendedores de livros e tantos outros que substituíram nos primórdios da cidade os leiteiros, os carroceiros, os burro paneleiros, os mascates, as janeleiras, os compradores de temperos, os velórios em casa, os chorões e os cafés dos defuntos, os vendedores de acaçá e abará com cestos nas cabeças, as vendedoras de mingaus, os mata-mosquitos e demais.

   Claro, alguns ainda sobrevivem como no tempo de antão ou da sabedoria popular, como se dizia, como o amolador de facas e tesouras e sua máquina primitiva movida a pedal, o profissional ainda a usar a gaita ou flautinha de Pã; os verdureiros que agora utilizam carros de mãos estilizados e não mais cestos nas cabeças; as vendedoras de mingaus  e outras tantas que vendem pirão de aimpim e churrascos, os vendedores de sucos e empadas, aqueles que ainda vendem bombons artesanais de mel e gengibre – popularmente conhecidas como balas de mel – feitas pelas vovós.

    Enfim, a avenida está no contemporâneo, no atual, computadorizada, internetizada, celularizada; e ao mesmo tempo no passado do século XX, quando de sua inauguração e até dos séculos anteriores do XVI ao XIX porque segue o roteiro inicial feito por Thomé de Souza e a sua trupe para fundar a cidade – é o mesmo Caminho da Vila Velha com pequenas alterações; e há exemplares de monumentos antigos como o Mosteiro de São Bento, o Forte de São Pedro, as igrejas da Vitória e de Santo Antônio da Barra e os Fortes de Santa Maria e São Diogo vivos, preservados e atuantes. 

   Em São Bento, por exemplo, há missas com cantos gregorianos e em Santo Antônio da Barra reza-se a novena para o santo de Lisboa e Pádua como se faz em Lisboa desde o século XIII. E essas peculiaridades só existem na Avenida Sete onde se pode assistir uma missa na Igreja de Nossa Senhora da Vitória sabendo-se que neste espaço (o templo original era mais acanhado) casaram-se filhas de Diogo Álvares (Cramuru) e Catharina Paraguassu no século XVI. Conhecendo-se a história, a sensação é grande. São nesses momentos que transpiram a têmpora, a essência, a alma da Senhora Avenida.

  Situa-se em São Pedro o Restaurante e Lanchonete Savoy que vai completar 50 anos de atividades em 2025. É um dos mais antigos restaurantes da avenida talvez só perdendo em antiguidade ao restaurante do Yacht, clube fundado em 1935, inicialmente com a finalidade de produzir barcos. Há um restaurante por lá, o Veleiro, mas o site da instituição não informa quando foi fundado; e o restaurante do Hotel da Bahia, fundado em 1951, hoje, Wish Hotel e que passou por várias reformas e mudou de nome.

   O Savoy fundado em 1975 pelo espanhol galego de Vigo, Joaquin Bouzas, o qual morreu recentemente com mais de 90 anos e dedicou sua vida ao Savoy, hoje, com três casas funcionando em Salvador e longe de qualquer crise - pelo menos o da Avenida Sete, no Relógio de São Pedro, ao lado do Beco do Cabeça - anda lotado de clientes desde quando abre as portas. 
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   Essa via é considerada um espaço transformador da cidade no século XX no sentido de se entender o movimento, a diástase, o mudar a fisionomia da urbe e os hábitos de sua população e já falamos do bonde (e seu fim) e a substituições pelos veículos automotores. Ouvimos muito se falar - sobretudo nos últimos tempos - do termo mobilidade urbana diante da implantação do metrô (a partir do final da década de 1990) e dos novos viadutos e vias expressas (desde a implantação da Avenida Paralela até os dias atuais).

    A Sete, no entanto, foi a pioneira e nunca perdeu a sua importância como via comercial, de serviços, residencial e de lazer que nenhuma outra tem.

   É só olharmos para a Paralela (Avenida Luís Vianna, o pai) que é importantíssima para a cidade no eixo Sul/Norte ainda mais com a expansão de investimentos no Litoral Nortes e os papéis dos municípios de Camaçari (industrial) e Lauro de Freitas (serviços e turismo), porém, uma via de ligação e com alguns empreendimentos comerciais (shoppings), mas, sem alma. Tem praia? Não. Tem baianas de acarajés na rua? Não. Tem amolador de alicates de unhas? Não. Você ouviu falar de alguém que ama a Paralela? Eu mesmo nunca ouvi. Essa, pois a diferença para a Avenida Sete.

   Quando falo que foi uma via transformadora remeto, evidente, a 1915, quando frequentar as praias (poucas) só se praticava como recomendação médica. E a mobilidade para arrabaldes como Barra e Rio Vermelho se dava por bondes e burros; e para Pituba e Itapuã só por burros. Foi a Sete que descortinou a cidade, abriu as cortinas das janelas do até então casarões coloniais do centro histórico antigo e entregou as praias para uso da população como lazer as pessoas de calções e maiôs, hoje, a maior e mais democrática área de lazer da cidade não só na Sete, mas em toda Salvador, nos seus 70 km de praias, ainda que muitas estejam semiprivatizadas.

   A Sete quando abriu era europeia e mudou. Quem frequentou como eu o primeiro shopping vertical da cidade no Edifício Fundação Politécnica sentiu essa mudança na pele. Não havia naqueles efervescentes anos 1970 resquícios da cidade europeia, salvo alguns poucos exemplos como a do saudoso poeta Godofredo Filho andando com seu terno de linho branco andando até a Chile e beliscando o chão com sua bengala. O que usávamos era a roupa internacional já ditada pelos jeans norte-americano e as camisas floridas a tropicália.

   Também vi no olhar as mudanças no Corredor da Vitória, pois, durante 4 anos na UFBA fui comensal daquele restaurante (1968/1971) e era morador da Nova de São Bento (vizinho da Sete) fazendo esse percurso a pé todos os dias com extensão para o Jornal da Bahia e Tribuna da Bahia e observei a derrubada de muitos casarões dos ingleses para dar lugar aos arranha céus em vidro e concreto. 

   E tive a felicidade de conhecer o casarão onde vivia a família do jornalista Jorge Calmon e sua coleção de pratos na parede, hoje, o prédio Mansão Leonor Calmon. 

   Então, posso dizer que fui (e ainda sou) testemunha dessas mudanças como estou vendo, agora, o Palácio da Aclamação antiga moradia dos governadores se transformar num museu.

   Falo de cátedra embora não seja doutor em nada. As Universidades estão repletas desses sábios e minha pena é apenas do andarilho, de quem vivencia, anda, olha com visão crítica e nada mais. E fica a decisão e o julgamento para os leitores do que escrevo. 

   Vê, pois, amados e amadas leitoras, que JJ Seabra e Arlindo Fragoso não expulsaram ou apagaram a memória da história Salvador com a abertura da Avenida Sete e sim renovaram essa história deixando bem visíveis algumas marcas do seu passado. É impossível se fazer uma reforma urbanística sem alguma destruição do passado remoto em qualquer cidade do mundo. Londres, Paris, Barcelona, Madrid que são cidades de milhares de anos (a antiga Bercino, Barcelona, estima-se 4000 anos) passaram por isso. E em Salvador não poderia ser diferente. Mas, a memória completa não se apagou nem se apagara.

   Mas, até hoje, nada supera a Avenida Sete e creio, não vai superar, isso porque a Senhora é resoluta, é tupinambá, é branca, é negra, é mestiça, é amarela, é rica, é pobre, é feia, é bela, é popular, é sofisticada, é mãe, é madrasta, é amante, é acolhedora, é querida, é odiada, é o orgulho da cidade do Salvador.

  Eu ando há 60 anos por seus caminhos desde os velhos e novos carnavais, participando dos seus desfiles civicos, dos seus momentos de protestos, indo às compras e ao lazer até quando for possível.