Cultura

O HOMEM VERDE DO GINÁSIO, CAP 18:O BOZÓ DO BECO DA GALINHA MORTA (TF)

Conto escrito pelo jornalista Tasso Franco e que integra novo livro sobre as histórias fantásticas que acontecem em Serrinha, Bahia
Tasso Franco , Salvador | 22/04/2024 às 11:08
O bozó do Beco da Galinha Morta e os boêmios
Foto: Seramov
    Esta narrativa é o capítulo 18 do livro de Tasso Franco, "O Homem Verde do Ginásio":

   Prólogo: Pareceu-me no vagar da tarde que entramos numa fase das histórias mais picarescas e o clima entre os presentes à távola estava deveras agradável. Deixei-os à vontade permitindo que quem quisesse seguir adiante contando um novo conto que se apresentasse e enquanto bebia um pouco d’água Cordelice pediu a palavra dizendo que se chamava Cordelice Damasceno Araújo, 50 anos, costureira de máquina de pedal, residente no bairro do Cruzeiro, moradora antiga, filha do velho Damasceno, alfaiate de linha e dedal, contemporâneo de Zé de Bomba, e que iria falar de uma coisa amena, história que lhe contou a viúva de um dos boêmios que participaram da noitada e assim passou a narrar:

  - Eram quatro os boêmios em cantoria. A noite da Serra estava como os poetas gostam de defini-la um 'céu de estrelas' que brilhava mais do que os anéis confeccionados por Manoelito, o mais famoso ourives local cuja vitrine na Araújo Pinho atraia olhares. Os músicos dedilhavam os violões, dois deles em harmonia perfeita um solando e o outro nos tons básicos de sustentação, e um terceiro carinhosamente chamado de Dodô soltava a voz, enquanto o quarto, ao que se registra se chamava, Martins, tocava o pandeiro com delicadeza.

   Ao que contam os mais antigos do tempo dos vereadores Zé de Sindé e do Joanício, ambos prestativos senhores da sociedade e contumazes proseiros, não se sabe ao certo quais donzelas ou meninas moças de janelas estavam a tentar conquistar naquela noite, mas registra-se ao certo que saíram de um botequim na Manoel Novaes, imediações de Moacir da Umbuzada, onde beberam alguns goles de conhaque Castelo (e não foram poucos), cervejas e doses de rum selo prata. E daí ganharam a Manoel Novaes sem cambalearem uma vez que eram contumazes frequentadores de mesas de bar e, quando não, de pés de balcões em Romão ou no snooker de Jardineiro.

   A senhora Cordelice era uma bela mulher: alta, morena de cabelos lisos negros caídos de lado, chamava a atenção dos presentes e prosseguiu sem apartes:

   - Ao chegarem no Largo da Matança que herdara esse nome por ter sido o local da matança de bois para abastecimento da feira livre da cidade, na época em tela um aprazível local de moradia sem a zoeira das antigas fateiras e dos mgarefes que iniciavam sem trabalhos em algazarra pelas madrugadas ouvindo-se, ainda mugidos dos bois nos porretes que os derrubavam para a morte. O, o grupo entoou a canção de Herivelto Martins "Ave Maria no Morro", de difícil interpretação, Dondô esforçando-se para não elevar o tom ao cantar o verso "Tem Alvorada, tem passada/Alvorecer/Sintonia de pardais/ Anunciando o anoitecer" - ao que se suponha dedicada a uma das filhas de Sêo Brizolara - e DêUilson arrematava com "E o Morro inteiro no fim do dia/Reza uma prece ave Maria/ bis, com Martins em dueto com Marinho fechando o apogeu com "Ave Maria/Ave/E quando o morro escurece/Elevo a Deus uma prece/Ave Maria" esta última frase cantada de forma suave, em tenor.

   Também não se tem notícias se alguma Brizolara apareceu na janela para aplaudir os cantantes ou se enamorar com aquela bela interpretação e de igual modo não há notícias de que os boêmios foram contemplados com alguma bacia d'água ou ovos de galinha de terreiro da Bomba.

   Um aparte, senhora, falou cara de Cotia: - É o que mereciam uma bacia ou penico de mijo. 

   A senhora Cordelice, seguiu seu dar trela ou resposta ao Cotia: - O certo é que o grupo seguiu adiante e dobrou a esquerda em direção à rua da Estação sentando-se num banco da praça e entoaram duas canções de Nelson Gonçalves, o clássico "A Volta do Boêmio" e "Cabocla" que era a preferida de DêUilson e ele adorava, sobretudo o verso exaltação que reza: Não creio mais em amornem amizade,/vivo só para a saudade/que o passado me deixou/ A vida, para mim, não vale nada/ desde o dia em que a malvada/o coração me estraçalhou". 

   Foi comovente. Por pouco o grupo não verteu lagrimas. Após está interpretação comemoraram o infortúnio, a desdita, o sonho da conquista de alguma amada, pois, não existe neste mundo de meu Deus e dos Demos que são muitos, nada mais triste do que a boemia em altas horas, sem destino, sem rumo, cantando apenas para as estrelas. Sentiram, no entanto, que chegara o momento de reflexão para mais um trago uma vez que levavam consigo uma garrafa de Bacardi para goles em comunhão. E nada melhor do que houvesse nesta querida praça uma rodada de goles no gargalo da garrafa, cada qual dando uma golada, discretas, pois, a jornada mal havia começado e teriam que vencer a Barão, a baixada de Dr. Zé Mota, até chegar a Rua da Estação, o destino semifinal e alcançar a Luís Nogueira onde se dariam por satisfeito e encerrada a seresta em frente ao jardinzinho.

   Assim, meus caros convidados desta távola seguiram nossos heróis tal dom Quixote e Sancho Pança, de lanças (violões) em punhos, pandeiro e vozes a seguir adiante dobrando à direita na casa de seu Gilberto Nery e tomando rumo pela Barão de Cotegipe rumo a Getúlio Vargas, o pai dos pobres, encostaram os corpos nas proximidades da carroceria do caminhão de Jessy e executaram a modinha "Fascinação", de Carlos Galhardo, no verso em epígrafo “Vivo com o passado, a sonhar/Vendo-te, ainda, em meu coração/Mas, tudo, promessas, quimeras, mentiras/Da tua fascinação" Dondô abrindo a voz, um raio de luz brilhando no párabrisa do caminhão, fez DêUilson ir às lágrimas, o que foi necessário, após o término da interpretação da canção mais uma rodada de rum.

     Tocaram Seguiram adiante rumo a Rua da Estação onde um dos boêmios, finalmente, declamaria um poema de Bilac e executaria "Rosa", de Pixinguinha, pois, entendia que sua paixão era "divina e graciosa estátua majestosa", tal como reza a música, e alcançaram a esquina onde reside o panificador Mira, ao que se conta, nesta esquina que daria adiante no beco da Galinha Morta.

   Meus amigos e amigas, prosseguiu Cordelice: - Tem esse nome porque senhores ricos que moram na rua da Estação têm suas casas com fachadas voltadas para esta nobre via e seus quintas de grande espaço ligados para este beco, daí que quanto morrem alguma franga, galo velho ou galinha com gogo, arremessavam-na no beco, a esse tempo quase todo desabitado, salvo um lupanar que tinha num trecho onde esses mesmos senhores e outros pulavam a cerca para visitar senhoritas alegres da noite. Os boêmios então executaram a canção de Orlando Silva "Lábios que Beijei", Dondô cantando a primeira estrofe: Lábios que beijei/Mãos que afaguei/Numa noite de luar, assim/O mar na solidão bramia/E o vento a soluçar, pedia/Que fosses sincera para mim; e Martins executando o segundo verso: Nada tu ouviste/E logo partiste/Para os braços de outro amor/Eu fiquei chorando/Minha mágoa cantando/Sou a estátua perenal da dor.  

   Dizem que os boêmios também ficaram tão emocionados que lá se foi o restante do rum que havia na garrafa, ao que se sabe, a segunda, e ainda havia um bom percurso pela frente a atingir.

   Mas todos vocês sabem que o divino é sagrado, que o céu nunca nega fogo, que o altíssimo sempre socorre os necessitados e o grupo ao atingir a encruzilhada - um deles se benzeu logo - executando uma modinha de caminhada, serestando, e se deparam com um bozó caprichado, um frago ou galinha assada, 7 charutos cruzando a titela do bicho, 12 velas cercando e iluminando o aribé de barro que o acolhia, montinhos de bolinhos de arroz, palmas de ogum, farofa e um prato de feijão verde, e quando chegaram perto pararam a música e um deles falou: - Como Deus é bom. Essa garrafa da pinga que vejo é a minha preferida. - Outro então falou: - Rapaz não mexa nisso, pois, se o fizer vai atrapalhar sua vida por resto do tempo. - Um terceiro então assim disse: - Lembre-se do ditado "chuta que é macumba", quem assim procede nunca mais se equilibra". O quarto, colocou o violão no canto de muro da casa de Dr. Zé Mota, pois a encruzilhada dava nessa direção numa subidinha que alcançava a rua da Estado; do outro lado para a Barrão; ao Sul alcançada o campinho de bola da Estação onde mora seu Aurelino Paes; e ao Norte o Beco da Galinha Morta cuja boca alcançava a gráfica de Ernesto, e disse: - Vocês são muito medrosos. Não tem nada disso e se colocaram esse galo assado e perfumado como está é pra gente comer e arrancou uma coxa do bicho e levou a boa. 

   Os outros três ficaram surpresos e com muito medo e pedindo para que ele parasse com aquilo o que ele contemplou: - Vou é abrir essa garrafa da boa e tomar um golão. E pegando a garrafa pelas mãos e tirando um abridor que levava na jaqueta fez força com o braço e a tampa voou pelos ares.

  Cordelice parou e assim finalizou: - Nisso aconteceu um estouro tão grande saindo uma luz azulada de dentro da garrafa, possivelmente um gênio do mal, um vermelho portando um tridente, o que abriu a garrafa largou tudo onde estava, cuspiu fora o pedaço da coxa que havia colocado na boca, pegou o violão e subiu a ladeirinha rente à casa de doutor Zé Mota; Dondô tomou rumo no campinho de Sêo Aurelino e quando por lá chegou já era madrugada e o dono da casa já estava a andar e pediu socorro; Marinho voltou em direção a Barão; e Martins, segurando o pandeiro subiu num fôlego o Beco da Galinha Morta.  É o que tinha a conta, assim encerrou Cordelice.
                                                         ****
    Como mediador do encontro procurei saber da senhora Cordelice o que aconteceu depois com os boêmios e o tal do gênio.

    Ela assim respondeu: - Os boêmios são incorrigíveis e continuam fazendo seresta e o gênio da garrafa de pinga, ao que sei, foi morar no bairro do Cruzeiro, é uma pessoa do bem e reside perto da casa de Sêo Cumbá.