Cultura

FESTIVAL DE CINEMA SALVADOR PANORAMA COISA DE CINEMA, por DIOGO BERNI

Um apanhado dos documentários em exibição
Tasso Franco , da redação em Salvador | 28/02/2021 às 11:14
O amor dentro da Câmara, de Laura Belov
Foto: REP
   Selecionado para o festival de Cannes de 2020, o filme é: Glauber em estado de nitroglicerina pura! Obviamente uma obra feita na montagem, nos mostra um Brasil atual na época de exílio de Glauber em Portugal em 1977, ou seja, na ditadura militar. 

   Trata-se de fragmentos de Glauber, no Rio de Janeiro e em Portugal, de câmera da filha Paloma, e ainda depoimentos de intelectuais, políticos e artistas sobre Glauber Rocha. Caetano, ACM, entre outros despejam suas colocações acerca da persona: "uma pessoa que não tem medo de se expor", por Caetano e "a democracia deve ser respeitada no campo cultural sob toda ou qualquer hipótese", diria ACM. 

   Já no campo das entrevistas quando o entrevistador é Glauber e as pessoas comuns são as entrevistadas, ele não pisa no freio por querer informar aos entrevistados sob suas obrigações e deveres para não ficar na mão da ditadura. Enfim, a parte que se completa no filme são cenas de bolsonaristas falando o que seu mestre fala todo dia: besteiras.

   O poder de persuasão de Glauber é espantoso, alinhado a uma capacidade de raciocínio também fora do normal, de modo que quando a pessoa mal acaba de responder a sua primeira pergunta, ele engatilha uma segunda sem perder o fio da meada da primeira. Filme de abertura do festival de cinema de Salvador.     

   O Amor Dentro da Câmera, de Lara Belov e Jamille Fortunato, Bahia,2021.

   "Hippie não bebe e nem pensa em aposentadoria, mas fuma maconha"; dentro deste contexto Orlando e Conceição Sena se mostram, se desnudam neste documentário inédito e estreando no Brasil no XVI Panorama Coisa de Cinema, este ano de modo online e disponível a qualquer cidadão brasileiro que esteja neste solo. 

   Segundo Orlando existia três opções para o casal hippie no inicio do seu relacionamento, que são elas: ir para o exterior, ou poderia ir para o Capão segundo Conceição, mas Orlando prefere "levantar bandeiras" nas ruas, com a discordância de Conceição que agora, com a idade física avançada, seria melhor para o casal "levantar bandeiras" pelo zap , Orlando não a responde. 

  A questão de existir ou não um mundo espiritual, além do que vemos, mostra-se presente em todo o doc, e tal espiritualidade chega a questão das almas gêmeas, porque Orlando e Conceição sem dúvidas são almas gêmeas porque um sente e sabe o que o outro quer ou necessita, ou seja, um sabe onde o calo do outro aperta e isto fica nítido quando a diretora Lara pergunta o que significa o amor para Orlando, onde este diz que o amor acontece no dia-a-dia, nos mais pequenos gestos e não aquele beijo de novela e então resinificando a palavra amor para a bela diretora.

    Voltando ao casal, este opta de não ir ao Capão ou ao exterior, mas ficar aqui e apostar na evolução espiritual, talvez esta seja a constatação do porque estão no cinema até hoje, pela sétima arte permitir uma evolução espiritual também, além da intelectual. 

  Diretor de Iracema : Uma Transa Amazônica, na década de setenta, e ainda diretor geral da prestigiada escola cubana de cinema e tv ( a EICTV) na década de oitenta, Orlando Sena se mostra um idoso antenado e atuante como professor de roteiro, enquanto Conceição Sena, a homenageada do Panorama deste ano e por isso há alguns filmes a conferir dela, pois além de atriz, se embrenha no ofício de direção. 
  
   O amor é uma coisa bonita de ver, mas também complexa, assim como a vida, e o doc estampa a resignificância da palavra, ainda assim não deixa de ser emocionante ver a história de um casal que se transfigura com a própria história do cinema brasileiro e latino-americano.
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   Pan-Cinema Permanente, de Carlos Nader, Brasil/2021. Conhecia o protagonista do documentário superficialmente porque não fazia questão de estar na mídia, e acho que ele foi o Glauber Rocha da poesia. Segundo Caetano, Waly foge da loucura, encenando; e talvez por isso ele fosse um pouco exagerado o tempo todo. 

   Na mostra "Panorama Convida", inédita e que venha pra ficar, No festival Panorama Coisa de Cinema em sua décima sexta edição. Quando digo que venha pra ficar porque tal janela, de certa maneira, sintetiza todas as outras janelas para fechar o dia de festival com chave de ouro.
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   Ventania no Coração da Bahia , dirigido e montado por Tennile Bezerra, Ba, 2021. Existe um pequeno limiar entre espiritualidade e loucura. Como ser com sensibilidade, prefiro acreditar no espírito porque alivia a dor, mas não desmereço quem não acredita em nada: trata-se de uma questão pessoal. 

   O curta de 25 minutos , ou seja quase um média, da Tennile fala da festa de Santa Bárbara em Salvador e conta a história do surgimento do evento comemorado todo mês de dezembro. O curta mergulha na questão da religiosidade, e a pessoa mergulhar nisso, desprovida de ego, se torna um baita desafio. Aí que entra a comparação entre fé e loucura. 

  Só os loucos tem fé, e talvez por isso são mais interessantes que pessoas que desacreditam. Quando pessoas que tem fé, mas que tem loucura também, e isto é mais comum do que se imagina, se encontram em festas cujo principal objetivo é endeusar uma entidade, aí as coisas podem ficar sem controle, o que nos conta a organizadora do evento, na Baixa dos Sapateiros. 

   O que vale ser dito sobre o doc é que conseguimos adquirir o sentimento da festa profana, e de alguma maneira, estarmos presente e de conluio no festejo , onde é forte a espiritualidade, mas também a loucura vem junto; então cabe a cada um mergulhar na dose certa para saber um pouco mais da história do candomblé e o modo de vida que o baiano opta por seguir, ou seja, acreditar mais na ficção do que a realidade, afinal esta é bem menos interessante.
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   Voltei ! , dirigido por Ary Rosa e Glenda Nicásio, BA/2020. concorrendo na 24 Mostra de Cinema de Tiradentes – 2021, abrindo o calendário brasileiro dos festivais de cinema, e no XVI Panorama Coisa de Cinema, de forma remota. 

  O ano é no futuro e o Brasil encontra-se em uma crise elétrica nunca dantes vista. Como em uma peça de teatro, duas mulheres conversam a luz de velas. Uma quer mijar e a outra a pirraça, contando seus podres, dizendo como ela mijava na avenida sete no carnaval. Não sei se cabe a comparação, mas lembrei dos filmes de Bergman em muitos momentos, por ter diálogos retos e concisos, e mostrando como em momentos de pensamentos de: “e agora, o que faço pra me dar com isso? Já que está tudo acabando e tudo está acabando comigo..”. 
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   Vander, de Barbara Carmo, BA/2020; concorrendo na 24 Mostra de Cinema de Tiradentes – 2021, abrindo o calendário brasileiro dos festivais e no XVI Panorama Coisa de Cinema, de forma remota. Quando escrevo que o filme é da Barbara, e não dirigido por ela, é porque existe um grau de pertencimento, ou seja, o filme diz respeito, e mais: fala quem ela é, e porque ela é assim: triste, e com razão. 

   Existe uma única tomada no curta-metragem: a foto 3X4 do pai, Vander. No fundo tem-se a narração da Barbara dizendo quem ele é, alias quem ele foi e porque foi. Vander era alcoólatra , tomava remédio para bipolaridade, era preto, e era constantemente abordado pela polícia. Sim , hoje Vander está morto , por uma dessas abordagens policiais das quais sofrera a vida toda. Vander sumiu antes de morrer, verdade, mas mais verdade ainda é que Vander já se encontrava ausente da sua filha Barbara já fazia tempo devido ao álcool e a problemas mentais. 

   Vander fez porque é gostoso fazer; Vander não mediu as consequências porque na hora a régua que conta é outra; Vander, mesmo se tivesse consciência, faria igual porque pessoas interessantes desobedecem a regras, e a regra de um doente mental não poder fazer filho é tremendamente estapafúrdia. 

   Barbara, na verdade, deveria agradecer por ser filha de uma pessoa tão especial como Vander, e sente orgulho disso, senão não faria um documentário. Mas é nítida também a dor que a Barbara sente em ter nascido sem pai, todavia esquece-se que o esforço que Vander fez para sair do lugar comum, e ser ‘normal’, para então encaixar-se como um homem que acrescenta a sociedade, pois favorece o número de natalidades.. Barbara hoje parece bem resolvida, e também ficamos por perceber tudo isso.
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   Rosa Tirana, dirigido por Rogério Sagui, BA/2020; concorrendo na 24 Mostra de Cinema de Tiradentes – 2021, abrindo o calendário brasileiro dos festivais de cinema. Rodada em Poções, agreste baiano, não podemos cravar que trata-se de uma obra experimental, até mesmo porque existe uma estória a ser contada; contudo a trama de uma menina fugir de casa por maus tratos pouco fica de lembrança no final do longa. 

  O que se registra de mais forte é o caminho, e não o fim. Ou seja: as pessoas que a menina encontra no decorrer no “sair de casa”. De inicio temos o mago José Dumont , interpretando um típico ceguinho poeta de interior, e metaforicamente tal persona simboliza a cegueira da humanidade sobre o seu próprio ato de existir, fazendo que a própria natureza árida da terra nos dê uma “força” de nos interarmos mais ainda pra baixo. 

   Todavia a fotografia e a trilha sonora é absurdamente bela, e nos eleva, e tira-nos da aspereza de clima e realidade tão hostis: a fome. Mas do que um roteiro redondo, o filme entrega algo maior: a esperança de continuar acreditando no homem, apesar dos pesares, e isto se faz , ou se concretiza, apenas por um único caminho, que é a poesia. 

   Ou seja: a capacidade humanística de criar realidades em cima de uma realidade física estabelecida e bem pisada, para então evoluir-se e se tornar maior que o problema real. Podemos afirmar que trata-se de uma obra fílmica extremamente sensorial, onde sentimos cada dor e cada gesto de grandeza dos personagens, sejam estes apenas cantarolando uma música ou poesia, ou a da própria protagonista mirim.
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5 Fitas, curta-metragem de Heraldo de Deus e Vilma Martins, BA/2020; concorrendo na 24 Mostra de Cinema de Tiradentes – 2021, abrindo o calendário brasileiro dos festivais de cinema, e agora em Fevereiro favorito na mostra competitiva de curtas nacionais no XVI Panorama Coisa de Cinema, em Salvador de forma remota . 

   A simplicidade é a maior, ou melhor, é a coisa mais difícil em uma obra fílmica. Saber colocar a câmera naquele instante de movimento brusco , ou saber achar o plano sequência correto, que imprima os sentimentos mais inabitáveis dos personagens , é o que faz a diferença entre um filme simples há um filme simplista. No filme simples, este é tão deveras simples que achamos, com certa facilidade, escreva-se de passagem, os conceitos profundo deste tipo de gênero cinematográfico. Filmes simples tendem a serem filosóficos por focarem em poucos temas e por isso expandi-los. Já os filmes simplistas são aqueles que não têm profundidade filosófica, como os filmes simples, e por isso não  acrescentam em nada após assisti-los. 

  O curta de Heraldo é um típico exemplar de filme simples, e por isso filosófico. O enredo se faz na fuga de dois garotos para a lavagem do Bonfim. Percebemos um roteiro bem trabalhado, e também bem assimilado pelos atores mirins. A narrativa flui e os garotos vão bem sob planos mais fechados: a festividade ao fundo os ajuda neste ambiente de filmar em festa popular, de maneira que os diálogos , ou ainda o barulho da festa em si, faz do curta ao mesmo tempo com toques filosóficos, como também carrega um ritmo bem norteado, acompanhado pelos tambores . 

  O ato da coragem de dois garotos sumirem de suas casas faz do curta ter nuances de rebeldia, de confrontar o legalmente estabelecido, no caso os seus pais, além da nuance filosófica, já citada. Memórias de infância tendem a ficar em nossas mentes quando crescemos, pelo fato de quando se é criança, tudo o que passamos e sentimentos são de maneira mais visceral, então natural que memórias infantis seja o início de jornada para diretores, e no caso do Heraldo, que já é um baita ator, é perceptível que este deslocamento de funções, ou até mesmo o acúmulo de funções no set, o faça bem e a Vilma também.