Cultura

NO MEU TEMPO DE MENINO: MAIS UM GRUPO DE HERÓIS DA NOSSA ALDEIA (TF)

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Tasso Franco , da redação em Salvador | 26/09/2020 às 08:42
Albertão, no círculo, terminou seus dias em Serrinha como sapateiro
Foto: FBF
   O jornalista Tasso Franco publicou no wattpad neste sábado, 26, a 19ª crônica do seu livro "No Meu Tempo de Menino, o último apito do trem", Serrinha (1945/1957), falando de personalidades do esporte, do comércio e da cultura da sua aldeia. Leia abaixo e todas as demais crôniocas no wattpad.
 
     NOSSOS HERÓIS DA ALDEIA FICAM VIVOS PARA SEMPRE

  Já comentamos sobre os meus dentistas no meu tempo de menino - Augusto Palma e Arnaldo Cohin - dos médicos - Miguel Nogueira e Germano Araújo - do sapateiro "Pirulito", do alfaiate Titi, do barbeiro Vicente e dona Maria do Mingau. Existiram dezenas de outros personagens e não dá pra lembrar de todos.

  É nessa fase da vida que mais recordações guardamos na cachola e há uma relação entre o que é real e o que é ficção. A criança não consegue separar essas duas coisas e para ela o Zorro é real; assim como o sapateiro "Pirulito"; e Tarzan é tão real, quanto Nêgo Minho, estiloso jogador de bola da Serra. 

   São personagens imortais nas cabeças das crianças e elas só conseguem diferenciar isso com o avançar da idade e alguns deles passam para o templo dos 'heróis'.

   Isani Moraes, uma serrinhense de longo curso, lembra-me de Neném Gonzaga, da elegância e do trato carinhoso de Evandro Mota no seu Armarinho Rosecler e de Albertão sapateiro, no seu dizer, "que solava nossas sapatilhas" e do tempo em que ia ao mercado de carnes com o irmão Gilson e seu pai comprar chã de dentro e outras comidas. Depois, levava o bocapio cheio para casa, cada qual segurando numa alça para aliviar o peso

   Lembro muito desses três personagens e, com um deles, convivi bastante, Albertão zagueiro do ACEC. Eu era garoto virando rapaz quando tive a oportunidade e o prazer de jogar bola ao lado de Albertão, campeão baiano pelo Botafogo, em 1949. Foi o primeiro jogador que vi colocar caneleira embora nem precisasse, uma vez que era alto como um poste, típico da família Ramos.

    Era irmão do goleiro Zé Ramos, apelidado de “Coqueiro”, e de Alfredo Ramos, centroavante clássico, e a gente até temia Albertão porque quando se chocava com ele ia ao chão. E seus tiros de meta, no velho campo ao lado do Cemitério, se bobeassem atravessavam o campo, passavam por cima do muro do cemitério e a bola caia n’alguma cova.

  Certa ocasião, já no final dos anos 1950, teve um pênalti contra o Fluminense e colocaram Albertão pra bater. O goleiro do FLU era Lourinho, filho de Cícero Freitas, irmão de Foba. Lourinho era baixinho, magro, braços curtos. No momento da cobrança do pênalti, Albertão afastou-se uns 10 metros da bola e Lourinho ficou pálido no meio do gol. Quando Albertão partiu e deu o tirombaço, Lourinho já tinha abandonado a meta. A bola passou feito um foguete e furou a rede. 

   Formou a zaga dos campeões baianos de futebol em 1949: Albertão, Nazário, Bartolomeu, Flávio, Tatuí e Júlio (foto acima) considerada até hoje uma das melhores da história da bola baiana.

   Sêo Neném Gonzaga tinha sua loja atrás da igreja matriz, hoje, sob comando do seu filho Gonza, e a gente era menino e ficava admirado quando chegava um caminhão de cimento para descarregar e os homens pegavam aqueles sacos de 50k como se fossem uma pena. Sêo Neném tinha um carregador - para distribuir o cimento no varejo - que todos nós admirávamos porque era um gigante.

    Sêo Evandro parecia um europeu. Creio que tinha os olhos esverdeados e atendia os clientes usando gravata e camisa de manga comprida dobrada até o cotovelo. Era de uma gentileza fora de série. Ele, Alfredo Mota, Juca Cândido, Vadinho, Sinfrônio, Aldemário e outros. Sêo Juca tinha uma lábia para vender sapatos, impressionante, e foi o primeiro comerciante de eletrodomésticos da Serra.

   Serrinha tinha ares civilizatórios copiados do modelo europeu, com a diferença que muitos dos homens usavam ternos de linho branco e não roupas pesadas para o frio.

   Nós, crianças, tínhamos basicamente três tipos de comportamento com os adultos: de respeito, de medo e de pirraça. As famílias só ensinavam o primeiro item, o respeito, e as crianças só chamava os adultos homens de "Sêo" e as mulheres de "Dona". As famílias católicas colocavam os filhos na catequese e ensinavam a pedir a benção. 

   Os outros dois itens - a pirraça e o medo - a gente aprendia com a rua, na vivência. Um dos que a gente mais pirraçava era Rodrigo, um pedinte baixinho que tinha as pernas entrevadas, andava com dificuldades e usava um cacete para se apoiar. Fazia ponto para donativos, a popular esmola, na porta do Mercado Municipal que dava de frente com a loja de cereais de Sêo Emilio Ferreira. Quando a gente passava por ele gritava: "Bufa de Véio". Rodrigo se azucrinava, rodava o cacete, e respondia "é sua mãe fdap...".

   A gente tinha medo do homossexual mais famoso da Serra (ninguém falava no nome gay, dizia-se viado), Elieser Boca Murcha. Ele tinha esse apelido porque, é o que se falava, levara um tiro na boca durante uma de suas incursões como provável pistoleiro de aluguel, onde atuava fora do município. De vez em quando, de fato, ele sumia da cidade e reaparecia meses depois, abonado. E aí, 'caçava' meninos para um programa que podia ser nos matos. A gente temia porque se dizia que andava sempre armado. Que eu saiba nunca atirou em ninguém na Serra.

   O respeito era a coisa que vinha de casa. Menino não se dava com os adultos. Mas, se conheciam. Nossa família era vizinha de Sêo Vilela e dona Sisi, uma casa depois se situava a família de Sêo Maninho da Licurituba e adiante a casa de Sêo Manoel Carneiro. Do outro lado do chalé do meu avô, onde morávamos, era a sede da Usina onde ficavam os motores a óleo da PMS que iluminavam as ruas da cidade, e depois, a casa de dona Maria Edistia. 

   No corredor do largo descendo para o Mercado tinham as casas de Sêo João Freitas, o Licouri; Sêo Nozinho do Lamarão; Sêo Reginaldo do Lamarão; os irmãos Antonio e José Nunes, este último casado com uma prima de minha mãe (Pipe Paes) e contornando a praça as casas de Sêo Zé Faustino, dos tecidos; Sêo Jair Novaes; Sêo Torquato Sacristão e dona Todinha e Sêo Demá. 

   Adiante, o armazém de Sêo Feliciano gerenciado por Paulo Oliveira; a residência de Sêo Padreco e a casa de Sêo Neco Bilheiteiro geminada com a das suas irmãs (hoje, supermercado Chama); a casa de Sêo Adbon Costa e mais acima a de Sêo Cerqueira, da Fábrica de Sabão; de Sêo Antonio Mercês e de Sêo Conrado marceneiro.

   Esses eram os adultos que eu conhecia e cujos filhos - Jeferson e Nilson (de Zé Faustino), Dinho e Toinho (de Neco Bilheteiro), Serrador e Zé Potó (de Demá), Tó e Belmiro (de Antônio Bernardo Mercês), Rominho e Veinho (de Sêo Cerqueira), Miro Pezão (filho adotivo de Nozinho do Lamarão), Fona e Pequinho (filhos de Paulo Oliveira) jogavam bola com a gente no Largo.

   Cada um deles tem sua história. O quarteto Antonio e José Nunes (irmãos), Zé Faustino e Toraquato Sacristão eram católicos fervorosos; João Licouri, Nozinho e Antonio Bernardo eram fazendeiros; Sêo Cerqueira era nosso Mr Pardal com sua fábrica de sabões coloridos; Conrado um perfeccionista da madeira. Fez um banco de madeira lá pro chalé que durou 60 anos sem amolecer as pernas.

   Quando dava trovoada na Serra o melhor local para tomar um banho de chuva era nas bicas do Armazém de Sêo Feliciano; e se você quisesse ficar rico tinha que comprar um bilhete da Loteria Federal com Sêo Neco; e se gostasse de futebol, especialmente do Vasco, tinha que ser amigo de Sêo Padreco, um especialista no time carioca em culhudas (anedotas).

   Pra fechar, dois outros 'imortais' foram os magarefes Diú, que apelidamos de Delho; e Pedro Magarefe. Diú foi o goleiro mais 'mascarado' da Serra. Um clássico. Fazia defesas extraordinárias, elegantes, e também engolia cada 'frango' medonho.

   Teria sido Diú quem inventou a 'cera' dos goleiros nacionais? Quando sentia que seu time estava fraquejando, numa bola mais difícil, caía e ficava estirado no chão. Não havia grama nem massagistas. Todo mundo corria pra socorrer Diú e de, de repente, ele se levantava numa boa.

  Pedro Magarefe era lateral direito do FLU e não perdia viagem. Se não acertasse na disputa da bola você que tirasse sua canela do caminho. O camarada tinha tutano de aço. Rivalizava com Carrancudo, o lateral direito do ACEC. O nome diz tudo. Carrancudo era baixinho e parecia um touro Miúra.  

   Acabei falando de três outros personagens e lá vai mais um pra o “the end”, o zagueiro Toninho Gago, uma 'delicadeza' na defesa. Todos não frequentaram academias de letras, mas, são 'imortais'.
                                                            *****
  * Campeões baianos pelo Botafogo, em 1949: Defesa imbatível era formada por Albertão, Nazário, BNartolomeu, Flávio, Tatuí e Júlio. (O Botafogo, hoje, tem sua sede em Serrinha sendo presidente Adalberto Lopes).

  * Campeões pelo ACEC, 1956: José Guilherme (Zé Elegante), Carrancudo, Vicente e Rominho; Paulo (Pinheiro), Geraldo e Tadeu; Clebinha, Tana (Alfredo), Cláudio e Zig.

  * Campeões pelo Fluminense, 1957: Lourinho, Cabinho (Farmácia), Gago e Pedro Magarefe (Vadinho); Joel, Toninho e Zezé; Sindé, Pereira, Coruja e Celso (Luzia).