Cultura

TOLÉ MANTÉM TRADIÇÃO EM CANAVIEIRAS A SÃO BOAVENTURA, p WALMIR ROSÁRIO

Radialista, jornalista e advogado
Walmir Rosário , Bahia | 14/07/2020 às 09:42
Tolé e familiares nas escadarias da igreja
Foto: WR
   Sempre que conversamos sobre os bons acontecimentos pelo mundo, minha mulher defende insistentemente os anos pares como os melhores e mais abundantes para a humanidade em geral e particularmente para ela. Nesse tema eu discordo e sustento que o mundo tá virado de pernas por ar e que não dá mais para fazer previsões sobre o futuro, o que prenuncia dias difíceis para as madames videntes.

   Esse ano – 2020 –, por exemplo é par e estamos enrascados com esse vírus, que tem ceifado vidas aos milhares e ainda por cima desempregou pessoas, esculhambou a economia, esvaziou as igrejas. E o povo de Canavieiras pode servir como testemunha dessa mudança negativa, pois nem mesmo pode ser realizada a tradicional lavagem da escadaria da Igreja Matriz de São Boaventura, padroeiro da cidade, realizada no domingo anterior a 14 de julho, dia do santo.

   Os mais religiosos podem dizer que minha tese não tem base científica, por ter a lavagem da escadaria cunho eminentemente profano, antecedida por um cortejo onde se cantam músicas que nada têm a ver com a religião, ainda mais que as bebidas alcoólicas são servidas sem moderação desde a concentração na praça Maçônica, seguindo pela rua 13 até chegar à praça de São Boaventura, onde os esperam dezenas de botecos armados para os festejos.

   Recomendo calma ao apressado leitor por ser de bom tom se certificar da história por inteiro, para somente a partir daí tirar suas conclusões após uma análise bem abalizada do ocorrido. Pra início de conversa, a festa de São Boaventura – uma trezena – é responsável pelo grande número de fiéis canavieirenses que moram em outras cidades e tiram férias para rezar pelas graças alcançadas e pedir novas.

  Quando ainda estava circulando, o jornal Tabu contabilizou quase 300 canavieirenses de nome Boaventura – ou Boinha, como são conhecidos – participando da festa, a maior parte deles moradores de outras cidades. Todos eles eram vistos diariamente na igreja e, após a função religiosa, “molhando a palavra” nos botecos da praça, além de não perderem por nada deste mundo o cortejo e a lavagem. Isso só pode ser religiosidade e respeito ao santo padroeiro.

   E digo mais, somente vão embora para seus lares no dia seguinte à missa solene do dia 14 de julho, sem deixar de participar da procissão e da benção das bicicletas, motos e carros, em frente a matriz. Pelo que eu soube, todas os botecos armados na praça colaboram com a igreja, pagando uma quantia que seria de direito da prefeitura, porém cedida para contribuir com as despesas religiosas.

   Por ser 2020 esse ano ridículo cheio de proibições, desde março que se falava no cancelamento da festa presencial religiosa de São Boaventura, na ausência dos Boinhas, do cortejo e da lavagem. Não deu outra e os devotos mais exaltados já clamavam pelo fim do mundo, castigo imposto pela falta de religiosidade, condição inadmissível nos canavieirenses do passado.

   Há dois anos, mas exatamente na noite da fatídica quinta-feira, 11 de janeiro de 2018 – olha o ano par aí – Canavieiras teria sofrido um castigo divino, conforme foi o sentimento e o desabafo de muita gente. Nesta data, o mastro de São Sebastião chegou à praça da Capelinha, mas não conseguiu subir e ficou arriado, estendido ao chão até o dia seguinte, quando foi erigido – pelo que dizem – com a ajuda de uma retroescavadeira.

   Apesar dos azares, sempre tem gente que está disposta a fazer a diferença. No caso em questão, acredito eu que a palavra certa é se redimir. Não é que Antônio Amorim Tolentino – Tolé, para o povo – resolveu não deixar a lavagem passar em branco e tomou a iniciativa de realizá-la, mesmo sem as baianas com flores e água de cheiro (custa caro e aglomera), bandas tocando em trio elétrico e os milhares de festeiros.

   Tolé, para quem não conhece, é proprietário de um currículo de fazer inveja a boêmios e mundanos. Desde cedo frequentador dos cabarés da famosa rua da Jaqueira, diretor da Lyra do Commercio, graduado do Banco do Brasil, fundador do Troféu Galeota de Ouro, Secretário Plenipotenciário da Confraria d’O Berimbau, frequentador de todos os botecos de Canavieiras, Camacan e Santa Luzia e demais cidades que visitou.

   Entretanto, como nem tudo são flores, hoje é considerado um falso a bandeira, haja vista ter tomado a tresloucada e infame decisão de renegar e se retirar do mundo etílico. Vizinho da matriz de São Boaventura, não há quem o faça entrar na igreja para assistir a uma missa ou rezar o terço. Estando a igreja de portas fechadas, arrebanhou parentes e vizinhos, encheu baldes e bacias de água, tomou posse de vassouras e lavou a escadaria.

   Em menos de cinco minutos a notícia corria os quatro cantos da cidade, deixando pasmos todos os ex-colegas de copo, especialmente da Confraria d’O Berimbau, que cumpriam quarentena no Panela de Barro. A gandaia espera que Tolé também se contagie para comemorar, na porta de sua casa, o verdadeiro dia de São Boaventura, 15 de julho, e não em 14 de julho, modificado inadvertidamente por um pequeno grupo anos passados.

   A pandemia tem operado milagres Brasil afora.