Cultura

RACISMO EM DEBATE: GEORGE FLOYD E O BRAZIL, POR FERNANDO CONCEIÇÃO

Fernando Conceição é professor da FACOM UFBA
Fernando Conceição , Bahia | 10/07/2020 às 09:32
George Floyd negro assassinado em Mineapolis, EUA
Foto:
    O racismo nos Estados Unidos da América (U.S.) já resultou no assassinato a bala de dois presidentes do país, ambos brancos: Abraham Lincoln em 1865 e John F. Kennedy em 1963.

  Apesar disso, não impediu que um negro, Barack Obama, fosse eleito para o cargo mais cobiçado do planeta. Eleito e reeleito, saindo vivo.

   Um candidato à Presidência em campanha, senador Robert F. Kennedy, irmão do presidente morto, também foi abatido a tiros em 1968.

  Grandes lideranças negras, o prêmio Nobel da Paz Martin Luther King Jr., em 1968, e Malcolm X, em 1965 enquanto discursava num comício no Harlem, foram também fuzilados.

  Aqueles são apenas cinco exemplos, tomados aleatoriamente, entre centenas (milhares, milhões?) de expoentes mortos nos U.S.

  Foram alvejados por se colocarem a favor de que mulheres, crianças e homens negros – uma minoria demográfica em torno de 13% – usufruam de direitos civis equivalentes aos dos brancos daquele país.

  Todos vítimas fatais do ódio racial incrustado no establishment da sociedade mais rica do mundo.

  Sociedade de supremacia WASP – White, Anglo-Saxion and Protestant –, branca, anglo-saxã e protestante.

   A escória, a exemplo do “white trash” (brancos católicos, como irlandeses), “asiáticos”, “latinos” e negros, é o resto. Visto como ameaça àquela supremacia.

   O ódio é recíproco, embora de intensidade variável. O branco controla o sistema; o negro apenas faz parte. Majoritariamente à margem, ainda que converta-se à religião dominante.

  É inimaginável ocorrências similares no Brasil, país das Américas que recebeu a maior quantidade de africanos escravizados por quatro séculos até a abolição da escravatura em 1888.

  Aqui o catolicismo serve de argamassa para amaciar os conflitos raciais. O açúcar, como observou Gilberto Freire sobre os índios, corrompeu e adocicou nossos contatos.

  “Racismo cordial” é o tributo que aqui se paga à hipocrisia das relações raciais. A “cordialidade”, no caso, é insincera.

  Construído à base da violência colonial portuguesa, do mais perverso e duradouro tráfico de mão de obra escrava praticados nessa parte do mundo, no Brasil ninguém é racista.

   Por não sermos racistas (Ali Kamel, 2006), receituário do mais importante gatekeeper do país, aqui no sul tropicalista chocamo-nos indignados com o brutal assassínio de um negro numa cidade lá dos confins do norte americano.

   A grade de cobertura noticiosa do conglomerado de mídia comandado pelo putativo Kamel sobre o trágico fim de George Floyd e o que daí decorre-se, intoxica-nos.

   Eis que comentaristas da TV Globo, entre esses o autor de Uma gota de sangue (2009), Demétrio Magnoli, que na sua cruzada contra os negros brasileiros Ali Kamel deu de bandeja um contrato permanente (Folha de S. Paulo também, à época) na GloboNews, reverbera em condenação da brutalidade da polícia e do racismo ianques!

  É uma overdose sobre vidas alheias. Dopados, aos milhões da audiência exposta a esse tipo de alienação temática é dado um consolo.

   Pelo menos no Brasil a coisa não é assim, é a mensagem subliminar.

   Veja: Até mesmo temos um time de jornalistas negras (com um negro) para servir, em emissão autodenominada de “histórica”, ao lustro de nossa imagem nesse instante.

   A brutalidade da polícia, o grande número de prisioneiros naquele país, a violência dos guetos, o desemprego estrutural, a miséria das habitações – ao vivo e em cores, é coisa de lá.

   Destaco o conglomerado Globo por sua audiência capilar e pelo papel deletério que tem na formação das mentalidades no Brasil.

   Como os Estados Unidos são racistas! Nós aqui temos os nossos problemas, mas a Rede Globo e toda a esquerda partidária, do mundinho artístico, cultural e da Academia, de repente repudiamos em uníssono o racismo.

   Todos aqui acabam de transformar-se em antirracistas indignados! Mesmo os próceres da Universidade que me emprega, Roberto Carlos e as baleias…

   Nos damos conta de como a sociedade brasileira seria superior à estadunidense nas relações raciais. Os senhores são solidários aos serviçais.

   Nos U.S. a abolição do trabalho escravo deu-se em 1863, em ato de força de Washington, DC., contra os Estados Confederados do sul.

   A sangrenta guerra civil, iniciada em 1861, com o norte liderado pelo recém eleito presidente Lincoln, cobrou a morte de 2% da população do dividido país (algo hoje em torno de 6 milhões de pessoas).

  Há uma equivalência entre a hipocrisia do racismo brasileiro e o rancoroso racismo estadunidense.

   Ambos igualam-se ao soltar seus cachorros fardados e bem armados em cima da negrada ignara.

UMA NOTA DE RODAPÉ.

Tratar do racismo em sociedades ocidentalizadas, ainda que a fórceps como o Brasil e toda a América Latina, Estados Unidos e europeias, é fichinha.

O horror das guerras raciais, étnicas e tribais tem sido uma constante naquelas partes do mundo invisibilizadas pela desatenção dos grandes conglomerados midiáticos.

Nos fundões da Ásia (China à frente), Eurásia (ex-territórios da ex-URSS), da África (não esqueçamos Ruanda), no Leste europeu (ocorre a guerra dos Balcãs) etc., quantos continuam sucumbindo por tais razões?