Cultura

AS LADEIRAS E BECOS QUE CONTAM A HISTÓRIA DE LISBOA E SUA GENTE (TF)

22ª crônica do livro de TF Lisboa como você nunca viu, leia no aplicativo literário wattpad
Tasso Franco , da redação em Salvador | 06/06/2020 às 09:02
Beco no bairro do Chiado
Foto: BJÁ
  O jornalista Tasso Franco publicou neste sábado no wattpad a 22ª crônica do seu livro Lisboa como você nunca viu, a pensão do amor, e fala dos becos e ladeiras da capital portuguesa. Leia todas as crônicas no wattpad.

  A publicada hoje foi esta abaixo: 

  AS LADEIRAS E BECOS QUE CONTAM A HISTÓRIA DA CAPITAL PORTUGUESA E DO SEU POVO

 
 Lisboa é uma cidade de dois andares; a Baixa Pombalina, às margens do Tejo; e o Bairro Alto, donde se vê o majestoso rio. Entre uma e outra cidade existem as ladeiras, as ruas, becos e travessas cada uma mais charmosa do que a outra, muitas da época da 'Feliticas Julia', da ocupação romana, ou do tempo em que se chamava "Ulixbona", dos árabes, que expulsos no longiquo ano de 1.147 pelo rei Afonso Henriques nunca deixaram Portugal e se fixaram na "Mouraria", hoje e ontem, bairro do fado e d'alguns desses becos encantadores. 

É delicioso nesta cidade com mais de 2 mil anos existência subir andando a Ladeira do Alecrim, da Baixa até o coração do Chiado, passando pela Pensão do Amor, por uma farmácia antiquíssima, por uma loja de azulejaria, uma pastelaria, um centro de cultura e outras lojas, o famoso Hotel do Alecrim ao Chiado, admirando cada vitrine, passo a passo, sem pressa, até atingir a Praça Luiz Vaz de Camões e daí olhar o Tejo e o vai-e-vem das pessoas a entrar nas igrejas, nos centros comerciais, na "A Brazileira", na livraria "Bertrand", onde se queira ir.

O Largo Camões foi onde se desenrolou o cenário do "O Crime do Padre Amaro”, uma das obras de Eça de Queiroz, uma novela de grande alcance popular. Autor, também, de "Os Maias", considerado o melhor romance português do século XIX.

Em Salvador da Bahia, onde moro, herdamos da capital portuguesa o prazer de colocar nomes populares em ruas, becos, travessas, largos e calçadas. E, por posto, também somos uma cidade de dois andares, aqui chamadas de cidades Alta e Baixa, também com suas ladeiras, becos e ascensores. 

 O Bar do João na Travessa do Cotovelo, Baixa Pombalina, próximo do Arsenal, vende sardinhas fritas produzidas pelo mineiro Custódio. Há algo mais luso-brasileiro do que essa narrativa! Esse amálgama, essa fusão. Impossível. Estive lá e me senti como se estivesse num bar da Sé, em Salvador, ou no Terreiro de Jesus.

  Salvador se parece demais com Lisboa, a cidade mãe. Pontevedra, na Espanha, é cidade irmã da capital baiana. Mas, a mamãe Lisboa com seus 135 becos e mais de 50 travessas, ruas e bairros muito parecidos com os da capital baiana não tem igual. Exceto Alfama e Chiado, este último homenagem ao poeta do século XVI, Antônio do Espírito Santo, que ao deixar o hábito de frade foi apelidado de "chiado" (malicioso), têm bairros homônimos: Graça, Antônio, Sé, Mouraria.

  Salvador com seus mais de 400 assentamentos sub-normais (invasões) deve ter mais de 1.500 becos, alguns deles sequer cadastrados pela Prefeitura, e recentemente surgiu um Beco das Cores para fazer par ao Beco do Off da moçada alegre e colorida carnavalesca. E fora desse período, coloridos seguem.

   Existe um livro editado pela UFBA, 2019, com o título "Entra em Beco, sai em Beco: Formas de Habitar em Salvador e Lisboa", de Urpi Montoya Uriarte, e uma música antiga "Madalena", de Gilberto Gil, que aborda esse tema: Entra em beco saia em beco/Há um recurso Madalena/Entra em beco sai em beco/Há uma santa com seu nome; Entra em beco sai em beco/Vai na próxima capela/E acende uma vela/Pra não passar fome.

    Só na Barra, onde moro, existem três bairros: a Roça da Sabina, o Calabar e o Alto das Pombas que tem dezenas de becos e travessas: do Pilão sem Tampa, da Roça, da Sabina, Calabar, Cruzeiro, Bacelar, Brandão, Nossa Senhora de Fátima.

   É uma confusão dos pecados. Há uma diferença entre beco, viela, travessa, rua, avenida, praça e largo. Beco (ou viela) é uma ruela pequena; travessa é um espaço maior que o povo também chama de avenida; rua é uma área mais ordenada e comprida; avenida é algo mais amplo quilométrica; e praça, largo e terreiro são a mesma coisa.

   Em Lisboa, as travessas, becos e ruas têm nomes bem populares: da Portuguesa, Laranjeira, Cegos, Bica Grande, Agulheiros, Menino Deus, Olarias, Pirralhas, Funil, Forno, Bolacha, Farinhas, Vidros, Abade, Oliveira e por aí segue. Nomes que eram colocados em função das casas comerciais e dos artesãos. Em Salvador, na Baixa de Quintas, tem uma rua que é mais conhecida como das autopeças.

   E alguns desses becos lisboetas são tão estreitos que uma pessoa residente à direita pode falar com um amigo residente à direita, de viva voz. Bater um papo. Prosaico. Poético. 

   Fernando Pessoa, o poeta nascido no Largo de São Carlos, poetizou: "Da minha aldeia vejo quanto de terra se pode ver no Universo/ O sino de minha aldeia/ Dolente na tarde calma/ Cada tua badalada/ Soa dentro de minha alma/ E é tão lento seu soar? Tão como triste da vida/Que já a primeira pancada/Tem o som de repetida.

   Salvador segue essa mesma linha com seus becos, ladeiras, ruas e travessas bem populares à moda lisboeta: Sapateiros, Cirilo, Bozó, Mijo, Dendê, Carvão, Mané, Tira Chapéu, Capitães, Bispo, Gostosas, Artistas, Quebranças, Mocotó, Mingau, Açougue, Tijolo, Coqueirinho, Lenha, Fogo, Queimadinho, Rainha e por aí vai uma lista imensa.

   Herdamos de Lisboa esse saber de colocar nomes bem populares em nossas ruas, travessas e becos. Andar pelo centro histórico de Lisboa, bem maior do que o de Salvador com suas ladeiras e becos intermináveis é um prazer enorme e a cada passo, a cada esquina, surge uma área habitável onde não entram veículos, salvo bicicletas e motos. E a população reside numa boa ainda que seja, sempre, um problema para os idosos devido as escadas, degraus e a dificuldade de abastecer suas casas de alimentos, de compras em feiras e supermercados.

    Mas, sempre se dá um jeito e há a ajuda de parentes e empresas que prestam esses serviços de levar remédios e comida em casas. É curioso o estender de roupas do lado de fora das residências para seca-las ao sol. Ninguém as furta. Ou por descuido as leva. Passa-se por calças, calçolas, califons, camisas, colchas e ceroulas, bordejando-as. É pitoresco. Lembra ruas do Trastevere de Roma, a Via Del Coronari ou Vicolo del Cedro.