Cultura

Antonio Candido, violência e luta armada, por FERNANDO CONCEIÇÃO

Antonio Candido, violência e luta armada: uma involuntária polêmica intelectual
Fernando Conceição , Salvador | 15/05/2017 às 16:45
Antonio Cândido
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MORTO AS 98 neste 12 de maio, o autor de sólida obra de crítica literária Antonio Candido, considerado um dos mais importantes intérpretes do Brasil, foi envolvido numa polêmica depois de conceder uma entrevista a este escrevinhador, à época repórter do Jornal da USP, em São Paulo.

O contendor foi ninguém menos que seu colega, assim como ele professor emérito da Universidade de São Paulo, Miguel Reale (1910-2006), jurisconsulto respeitado do seu tempo. Que na edição de 16/12/1991 da seção Tendências/Debates, do jornal Folha de S. Paulo, em artigo intitulado “Descaminhos da esquerda”, escreveu a propósito:

– No Brasil, essa bandeira [a da luta armada] foi recentemente levantada por Antonio Candido, ilustre intelectual de formação aparentemente moderada, conforme entrevista concedida ao ‘Jornal da USP’ de 18 a 24 de novembro último, onde se declara que os ideais socialistas somente podem ser alcançados com luta. “Se for preciso a revolução”, declara ele, “faz-se a revolução; se for preciso a luta armada, faz-se a luta armada. Os sociais-democratas não admitem isso”.

Como repórter, eu havia entrevistado Antonio Candido durante uma tarde, na casa dele, para uma matéria especial tendo por tema a visão de intelectuais de esquerda sobre o fim do socialismo real com o desmantelamento recente da União Soviética.

Candido era apenas uma das fontes. Entrevistei mais de meia-dúzia de outros intelectuais, a exemplo de Fernando Henrique Cardoso (então senador da República), Roberto Romano, da Unicamp, Leôncio Martins Rodrigues, Marilena Chauí e mais.

A matéria foi capa do Jornal da USP e ocupou seis ou sete páginas quando publicada. Miguel Reale, que por não ser de esquerda estava fora da minha agenda de entrevistados, reagiu dias depois através da Folha.

Antonio Candido replicou, em 22/12/91, com um artigo intitulado “Sobre a violência”, no qual diz:
– Destacando um trecho e separando-o do resto [da entrevista que dei ao ‘Jornal da USP‘], o eminente professor Miguel Reale afirma que eu levanto a bandeira da violência e da luta armada, o que é exagerado e incorreto. Levantar a bandeira significa, se não me engano, proclamar e preconizar com entusiasmo uma idéia ou um tipo de conduta. Não é o caso da minha entrevista, cuja tônica é outra.

– O que pretendi dizer foi que, para mim, o socialismo não acabou e continua válido como solução possível para os graves problemas gerados  pela desigualdade econômica e social, e portanto para promover a humanização do homem. (…)

– O social-democrata rejeita a violência mais acentuada, enquanto no meu modo de ver o socialista democrático pode aceitá-la, se for necessário para atingir as metas ideais. Não porque goste dela, mas porque ela é um tipo de comportamento que pode ocorrer eventualmente na vida política. A violência não é essencial, ela é uma possibilidade constante e uma necessidade eventual.


Miguel Reale, da Academia Brasileira de Letras, atacou o oponente como autor de “aleivosias”, irritando o adversário

Em tréplica de 30/12/91, sob o título “Democracia e violência”, escreve Miguel Reale:
– (…) afirma Antonio Candido que eu teria feito “um comentário bastante parcial” à entrevista por ele dada ao ‘Jornal da USP‘. (…) Repilo firmemente essa aleivosia. (…)

– Antonio Candido proclama “nunca ter preconizado a violência”, em quase meio século de participação no movimento socialista – o que conflita com sua tese sobre “violência eventual”. A seu ver, o emprego da força tem sido usado em política, “na maioria das vezes pela direita e o centro, como foi o caso do golpe militar de 1964, quando impecáveis liberais, amantes da pureza democrática, cultores da lei o estimularam e a ele aderiram com entusiasmo”.

– Em primeiro lugar, observo que, se esse cálculo fosse verdadeiro, como “maioria absoluta” significa metade mais um, haveria praticamente equivalência no uso da violência… O certo é que meu ilustre opositor aproveita a deixa para lembrar que eu não posso estranhar o uso da violência porquanto, como membro do governo do Estado, eu teria participado do movimento de 1964. Não o nego e disso me orgulho, porquanto ele foi desencadeado em legítima defesa, para impedir a escalada comunista no organismo do Estado, como se tornou definitivamente transparente após o histórico artigo de Luís Carlos Prestes na Folha de S. Paulo (…).

Depois disso, Antonio Candido publica um artigo final, a 7 de janeiro de 1992, na mesma seção Tendências/Debates da Folha, demonstrando indignação. Justifica o título dado ao artigo, “Ao leitor”:
– É de fato aos leitores que me dirijo, não ao professor Miguel Reale, pois a partir do momento em que ele me atribui a prática de uma aleivosia, dei por encerrada qualquer possibilidade de diálogo entre nós.

No parágrafo de abertura do texto, Antonio Candido escreve que no artigo “Sobre a violência” teria explicado a sua posição “em face de um comentário do professor Miguel Reale a certa entrevista que dei ao ‘Jornal da USP'”.
– Em “Sobre a violência” abordei  essencialmente dois pontos, o primeiro dos quais foi o tratamento que o professor Miguel Reale deu à minha entrevista. (…) O segundo tópico (…) foi o esclarecimento do que penso sobre a violência política. (…) Quando a esquerda a emprega, ela é vista como crime, mas se torna curiosamente redentora quando o centro ou a direita o fazem. Como exemplo citei o golpe militar de 1964 e a participação nele do professor Miguel Reale. Ora, no seu segundo artigo este confirmou o que eu disse, ao explicar que, em face do que lhe parecia naquele momento a ameaça comunista, optou pela violência armada e disso se orgulha. Eu não poderia querer melhor demonstração do meu ponto de vista. (…)

Este escrevinhador acompanhou a polêmica sem torcer para nenhum dos lados.