TURMAS DE RUA: A TRAVESSIA DO "MINAS GERAIS", por CHICO RIBEIRO NETO

Chico Ribeiro Neto
20/09/2020 às 10:03
 O casco do barco foi uma folha de Madeirit, roubada à noite nas obras da Avenida Contorno, enquanto o vigia dormia. Ou ele vendeu pra gente, não me lembro. Isso foi na década de 60, em Salvador. Para as laterais da embarcação eu e “Zoinho” juntamos a grana e compramos a madeira.

  Começava a nascer nossa catraia ou “quadrada”, cujo casco é reto, sem quilha, as laterais também são retas e somente a frente (proa) e a parte de trás (popa) têm um corte inclinado. O barco começou a ser feito no quintal da casa de “Zoinho” em cima de dois cavaletes. Não sou bom de medição, mas devia ter entre dois a três metros, estourando. “Zoinho”, um apaixonado por navegação, tanto que se tornou oficial da Marinha, fez praticamente tudo. Eu ajudava a bater pregos e a serrar alguma madeira. Depois, ainda faltavam o calafeto, um tipo de estopa para tapar as junções das madeiras, e o betume, que é derretido sobre a calafetagem.

   Primeiro dia do barco foi uma festa na praia do Unhão. Era um remando e o outro tirando água. Tinha que ter sempre uma latinha à mão. Depois, reforçamos a calafetagem. Mas no batismo do barco não teve champanhe nem primeira dama. Só uma porrada de menino e  a gente com o remo batendo na mão de cada um: “Sai daí que naquele dia você não me ajudou a bater prego”. A catraia só cabia uns três, de quatro em diante começava a entrar água.

   Meu encantamento com o barco era tão grande que meu irmão Cleomar o apelidou de “Minas Gerais”, o porta-aviões construído na Inglaterra em 1944 e vendido, de segunda mão, ao governo brasileiro em 1956 e finalmente vendido pelo Brasil, como sucata, a um estaleiro chinês, em 2002. A compra do “Minas Gerais” foi muito criticada e inspirou o compositor Juca Chaves a lançar, em 1958, a música “Brasil Já Vai à Guerra”. Duas estrofes: “Brasil já vai à guerra/ Comprou um porta-aviões/ Um viva pra Inglaterra de 82 bilhões/ Mas que ladrões”. “Enquanto uns idiotas/ Aplaudem a medida/ E o povo sem comida/ Escuta as tais lorotas/ Dos patriotas”.

   Nosso “Minas Gerais” navegava à toda. Dormia ancorado na praia do Unhão. Nossa âncora, a chamada poita, era uma pedra amarrada numa corda, com uma forquilha de madeira para a pedra não correr. Fim de tarde, eu e “Zoinho” voltávamos para casa cada um levando seu remo, se não roubavam.

   Uma vez, fomos pescar na praia de Doutor Barros, hoje a chamada Prainha vizinha ao Solar do Unhão. Jogamos a poita, ficamos pegando quatinga (um peixinho bom de fritar)  e jogamos a linha de fundo com uma cabeça de quatinga no anzol para tentar um peixe maior. Foi quando percebemos um grande puxão na linha de fundo, cada vez mais intenso. Puxamos a linha a quatro mãos. Fisgamos um caramuru (moréia) de uns três a quatro palmos. O bicho tava brabo, foi ele entrar no barco e a gente sair, pulando dentro d’água. Agoniado, o caramuru mostrava seus afiados dentes. Combinamos subir no barco os dois de uma vez, um dois, três, já. Esmagamos a cabeça do bicho com o remo e ele ainda estrebuchava.

   Levei o caramuru pra casa. Minha mãe, dona Cleonice, tinha pensão e uma hóspede, enfermeira, disse, ao ver o caramuru: “Dona Cleonice, não deixe Chiquinho comer esse peixe, não, que é venenoso”. Minha mãe insistiu para eu jogar o caramuru no lixo. Aonde? Depois de tanto trabalho. E um pescador já tinha me falado que o veneno fica só na cabeça do bicho. Você mede quatro dedos abaixo da cabeça e corta, aí pode comer. As empregadas quando viram o caramuru: “Ai, meu Deus, isso é uma cobra, eu não vou tratar isso, não”, saíram correndo. Tratei o caramuru, cortei a cabeça conforme instruções, fritei e comi com feijão e arroz. Nunca mais morri.

   Um dia, eu e meu amigo “Atum” fomos pescar no “Minas Gerais”. A gente saía no máximo uns 100 ou 200 metros da praia, porque nem corda nem embarcação aguentavam. Ancoramos, ou apoitamos, e ficamos a pescar quatingas. De repente, nosso silêncio é quebrado por uma lancha vinda do Iatch Clube da Bahia com uma bela loura de biquini esquiando. Passaram várias vezes perto da gente, provocando ondas que poderiam levar a pique o “Minas Gerais”.

  Eu pescando na proa e “Atum” na popa, um de costas para o outro. De repente, perguntava alguma coisa a “Atum” e ele não respondia. Estava “descascando uma” na intenção da esquiadora. O pessoal da lancha  percebeu e se picou, antes que a embarcação fosse invadida por aquele bando de taradinhos do Unhão.

  A turma da punhetinha (a turma toda) tinha um hino que ressaltava o valor da prática solitária: “É de micocó, é de consciência/ Aqui eu tô livre de pegar doença”. Tinha um amigo que foi surpreendido pela mãe no exato momento: “O que é isso menino?” “Punheta, minha mãe”. Tomou uma surra na hora e nunca mais “fez justiça com as próprias mãos” com a porta do quarto aberta.  Diziam também: “Quem “bate” muitas nasce logo um fio de cabelo na palma da mão”. Quando o menino ouvia isso e olhava para a própria palma da mão logo se denunciava.

  Um dia, a maré forte quebrou a amarração do “Minas Gerais” e ele ficou à deriva, batendo nas pedras, e foi parar na praia da  Preguiça, já perto do Elevador Lacerda. O cara que resgatou o barco foi lá em casa e pediu “trinta” para devolvê-lo. “Se eu não pego o barco, ele ia embora”. Minha mãe reclamou, mas acabou pagando os trinta.

  Mas nosso “Minas Gerais” não era mais o mesmo. Durou mais pouco tempo e se acabou como destroços na praia. Talvez algum pedaço de madeira tenha servido para remendar uma porta ou janela de um barraco embaixo dos arcos da Contorno que se abrisse de manhã para o belo, tranquilo e luminoso mar do Unhão.