Afrika, como Brasil, não é para iniciantes

Fernando Conceição
22/01/2016 às 19:41
 NO MOMENTO em que o avião, vindo de Madrid, pousava no aeroporto de Dakar, Senegal, por volta de meia-noite naquele junho de 2009, minha mãe morria num leito de hospital em Salvador, Bahia.

   Transpostas as barreiras alfandegárias e de imigração, enfrentei a onda barulhenta da multidão de braços e rostos que me oferecia serviços de taxis informais.

   Caminhei, sendo agarrado aqui e ali por estranhos, em direção a alguma saida da cerca lateral que separa o espaço aeroportuário da área externa de espera, onde centenas de pessoas aguardavam os desembarcados, oferecendo isso e aquilo.

   Na penumbra do lugar mal iluminado, não divisava as vozes na algazarra, até que ouvi meu nome aos berros. Então pude avistar Arnaldo Lima e o seu filho adolescente, este em boné e roupas estilo rappers.

   Era a minha primeira viagem, de outras, a um país da África. O compromisso de levantar dados para a biografia do geógrafo Milton Santos me trazia ali. O casal Arnaldo e Elisa Lima me abrigariam pelas próximas seis semanas.

    Arnaldo trocara a Bahia e o Brasil pela África desde o começo dos anos 1980.

   Inicialmente fora convidado a dar aulas na Obafemi Awolowo University (Universidade de Ile-Ife) da Nigéria. Enamorado de Elisa, também baiana, casou-se e partiram juntos.

   Na Nigéria quedaram-se por mais de meia década. Aprenderam línguas e costumes das diferentes etnias. Foi quando ele, espiritualista no sentido da busca de uma essência divina no homem, mergulhou fundo nos estudos e práticas das religiosidades e místicas daquelas culturas.

   Da Nigéria ele obteve, aos auspícios do embaixador Alberto da Costa e Silva, o lugar de diretor do Centro de Estudos Brasileiros, na recente embaixada do Brasil em Bissau, capital da Guiné de língua portuguesa. Ali conceberam seu filho, que nasceu em 1988, entretanto em uma maternidade de Dakar – vez que Bissau não possuía hospital nessas condições.

   Estourada a sangrenta, horripilante, guerra civil na Guiné Bissau em 1998, quem teve condições de fugir, fugiu para não ser morto. Arnaldo ficou, mas mandou a mulher e a criança de dez anos para fora. Elisa e o filho conseguiram, com dificuldades, um lugar numa embarcação para Praia, capital de Cabo Verde, de onde foram transferidos para Lisboa, Portugal.

    Enquanto diretor do Centro de Estudos em Bissau, o que mais Arnaldo fez, auxiliado pela esposa, foi oferecer às crianças, jovens e adolescentes guineenses – assim, também aos seus pais, se vivos – a esperança de obter uma vida melhor pelos estudos.

   O casal aprendeu o idioma creolo, a língua comum nacional. Assim, sua tarefa primeira era ensinar o português. Depois, alfabetizar e escolarizar meninos e meninas. A seguir, contribuir para que obtivessem vistos de estudantes para o Brasil. Muitos alunos encaminhados por Arnaldo vieram para faculdades e universidades brasileiras.

   Em junho de 2009 quando foi me pegar no aeroporto, Arnaldo e família já haviam se fixado em definitivo na capital do Senegal. Depois da guerra civil em Guiné, o governo brasileiro desativara o Centro Cultural.

   Arnaldo, desde então, ficara desempregado. Sua luta pela década seguinte, até neste momento em que me abriga em sua casa, era para que a justiça e o Itamaraty reconhecessem o seu direito a indenização pelos tempos trabalhados a serviço do Brasil e da Guiné. Mora no bairro denominado Maristes. Assim chamado por conta do prestigiado colégio católico, em um país muçulmano. Região de expansão da grande Dakar.

   Em verdade, a justiça guineense e a justiça brasileira já decidiram a seu favor. Mas o governo brasileiro recorria sempre. Anos e anos de, a partir de Dakar, idas e vindas em perambulações entre Bissau e Brasília, trouxeram fadiga ao professor baiano embrenhado na África por quase três décadas.

   Nas semanas em que me abrigaram, testemunhei sua tenacidade. Elisa, sempre mais expansiva, buscando ver tudo de forma positiva. O abrigado, tudo fazendo para diminuir o peso de sua presença na casa.

   Depois de duas incursões com Arnaldo pelas ruas de Dakar, principalmente pelo fulgurante mercado a céu aberto de Sandaga, este escrevinhador ganhou asas. Saía todas as manhãs, pulando de transporte improvisado daqui para ali, caminhando e escarafunchando os cantos da cidade – inclusive sua periferia.

   Também dessa forma incursionei, via terrestre, da capital senegalesa a Bissau, atravessando The Gambia. Me fiz acompanhar de Augusto Mango, universitário guineense matriculado na capital senegalesa, com apoio do casal brasileiro. Regressamos, em parte, de navio de passageiros que sai de Zinguichor para Dakar.

   Diga-se que Zinguichor é região em permanente conflito armado, com trânsito limitado por forças militares do Exército senegalês em refregas com combatentes guineenses que querem sua reanexação a Guiné.

    Incursão mais longa o visitante fez ida e volta, sozinho, de Dakar a Bamako, capital do Mali, por estradas, desertões e desvios nada seguros. O ônibus, sem janela, clandestino, não tem hora de partir ou de chegar. Se chegar.

   Escorchados a cada quilômetro por prepostos policiais, durante todo o dia, toda a noite e madrugada desde a partida, motorista e passageiros são humilhados, tendo de descer, entregar documentos retidos por sujeitos (homem ou mulher) fardados, somente devolvidos mediante pagamento de algum dinheiro.

   Na primeira madrugada, o motorista que a este escrevinhador parecia sem noção, jogou o ônibus sobre uma ponte que atravessa um rio, caudaloso e barrento, sobre uma vila e outra. Chovia torrencialmente.

   Apenas as extremidades da ponte eram visíveis. O resto estava submerso nas correntezas.

    Saí da minha dura cadeira e fui para frente, próximo ao motorista, que guiava palmo a palmo, como se “experimentando o terreno”. Todas as janelas trancadas. Lá fora, escuro. Um outro passageiro também veio para a frente. Enquanto, a não ser as crianças que dormiam, os demais, olhos arregalados, rezavam a Alah.

   Aquele me pareceu um motorista louco. Contudo, vinte horas depois quando adentrávamos a periferia de Bamako, onde abandonou o ônibus, ao conversar com ele o sujeito me disse que o tempo todo dirigiu remoendo tremendas dores.

   Então suspendeu um dos lados da calça e me deixou contemplar uma enorme ferida putrefata em sua perna direita (a do freio e do acelerador): escorria pus e sangue de um ferimento de bala.

   Um dia conto sobre a estadia na capital malinense. Basta adiantar que semana seguinte, chegado sem um arranhão de volta à casa de Arnaldo, a porta se abriu e lá dentro havia um monte de velas acesas. O casal se regozijou ao me ver intacto, crendo na eficácia de suas orações à Nossa Senhora.

   O objetivo único de Arnaldo e Elisa, então, era proporcionar o mínimo de solidez a uma futura carreira do filho, Víctor.
Sem mais apelação do Itamaraty, a indenização trabalhista sairia meses depois. Saldadas as dívidas acumuladas, tudo o mais seria para instalar o filho numa universidade nos Estados Unidos da América – o que, de fato, aconteceu.

   Um ano e meio depois disso, às véspera do Natal, depois de retornar ao Brasil, Arnaldo morria de câncer em Salvador.