O ÚLTIMO APITO DO TREM na estação da Leste em Serrinha

Tasso Franco
11/07/2015 às 20:17
As pessoas de minha geração dos anos 1940/1960 e de gerações anteriores, no final do século XIX e que viveram em Serrinha entre 1880/1940 têm (ou tiveram) uma ligação muito fote com o trem da Leste.

   Hoje, aos novos, parece irrelevanta falar nessas recordações da história, mas a chegada da São Francisco Railway Company, em 18 de novembro de 1880, foi o fato mais relevante da história de Serrinha. 

   Imaginem vocês o que representou a instalação de um sistema ferroviário numa vila (o Arraial da Freguesia de Serrinha passou a ser Vila de Serrinha em 13 de junho de 1876, quando é criado o município desmembrando-se de Irará) e apenas 50 anos depois de instalada a primeira ferrovia na Europa, a Stockton & Darlington Railway, na Inglaterra, e os reflexos dessa inovação.

   Até então eram poucos (pouquíssimos) os cidadãos serrinhenses que se deslocavam até Salvador, a capital da Província da Bahia, e os que faziam essa aventura se utilizavam de uma tropa de burros indo até Cachoeirae daí de vapor via Iguape até a capital. Ou seguiam pela rota inicial dos primeiros desbravadores nas trilhas de Água Fria até Alagoinhas (o trem chegou em Alagoinhas em 1863) ou seguindo de burro via Catu até a captital.

   O Arraial e depois a Vila de Serrinha, nos seus primórdios, eram abastecidas pelos tropeiros - com medicamentos, querozene, tecidos, objetos de toucador, calçados, etc. Serrinha vivia isolada do mundo. A idade média de vida era 50 anos. Muita gente morria de parto e doenças mais comuns. Até uma penicilina, antibiótico mais popular da época, era uma raridade.

   Quem mudou todo esse cenário foi o trem - a 'Chemin de Fer' (alguns gostavam de falar francês nessa época) a popular Leste. A Vila de Serrinha se equiparava a Londres, a Chicago e a outras localidades mundiais nesse aspecto. 

   O trem trouxe a engenharia, a medicina, a advocacia, a organização sindical, o PCB, a hotelaria, encurtou a distância para Salvador em apenas 6 horas, instalou uma comunicação instantânea via telégrafo, mudou o comportamento das pessoas, do comércio, da indústria nascente do algodão e do tabaco. Ou seja, mudou tudo.

   Foi, de fato, uma revolução sem precedentes na história da localidade. Ser ferroviário significava um novo tipo de trabalhador, qualificado, e o trem trouxe o direito e o jornalismo da capital, a tecnologia, a literatura, e os viajantes modernos 'sepultaram' os tropeiros e seus burros. 

   O trem era fascinante. O apito, o movimento de pessoas nas gares, o restaurante, o bar, o sino, a sala de embarque, os passageiros engravatados, os ferroviários com quepes, os trolleres, a caixa d'água, a oficina, uma maravilha. Estávamos em Nova York, vivíamos como em Londres. Ouvia-se piano e dançava-se valsas e polcas.

   Centenas, milhares de vezes fomos ver o trem. Era também uma atração para a garotada e para os adultos. A fofoca chegou em Serrinha com o trem. Quando chegava um homem bonito, engravatado, todo mundo falava. Quando tinha um baile no Hotel da Leste a vila e depois a cidade se engalanavam toda. Havia o 'sereno' das pessoas que não podiam entrar no baile, mas ficavam de fora assistindo.

   Rui Barbosa chegou para fazer a campanha civilista no inicio do século XX de trem. Foi um acontecimento memorável. O "Águia de Haia" em Serrinha. Os outros municípios próximos ficavam com uma inveja enorme.

   Serrinha deu um salto civilizatório. Muitas familias passaram a mandar seus filhos para estudar em Salvador. Daí surgiram os primeiros farmacêuticos e médicos, engenheiros e assim por diante.

   Eu fiz minha primeira viagem a Salvador - salvo melhor juizo - nos anos 1957/58 depois que passei no admissão e entrei no ginásio que, a essa época se chamava Ginásio Estadual de Serrinha. Meu pai (Bráulio Franco) tinha uma tipografia e livraria e comprava produtos numa importadora alemã que ficava no Comércio, a Westfallen. Os gringos vendiam papel em resma, tipos em chumbo, máquinas impressoras, calandras, etc. 

   E lá fomos nós no 'Pirulito' que passava em Serrinha vindo de Juazeiro por volta da meia noite. A estação era um burburinho de gente. Senhoras vendiam galinha assada e outros petiscos na balaustrada. 

   Lembro que 'meu velho' disse: - Quando o trem partir se segure.

   Colei nas pernas dele e lá fomos nós. Quando o trem deu o apito de partida após o toque do sino meu coração partiu junto. Batia mais que a locomotiva movida a lenha e vapor.

   Não se enxergava nada e lá ia o trem se movendo e a gente escutando as batidas das rodas de ferros nos dormentes e trilhos pá-pá-pá-pá. Sensação indescritível. 

   Creio que meu coração só dimuniu o batuque quando chegamos a Estação São Francisco, em Alagoinhas. Estava zonzo de sono. Aí já estávamos sentados e quando me dei conta o trem havia chegado em Salvador, na Estação da Calçada. O dia estava amanhecendo.

   Daí pegamos um táxi Chevrolet preto e fomos até a Pensão de Sêo Lisboa que ficava na Rua Barão de Cotegipe, uma segunda casa dos serrinhenses na capital. 

   Foi na sala da Pensão de Sêo Liboa - quem comandava a pensão, de fato, era dona Neném, sua esposa, pois, Lisboa gostava de tomar umas e outras - que vi pela primeira vez o mar. Meu coração voltou a batucar tão forte que quase desmaio. O que era aquilo à minha frente! Aquele mundo de água e os navios à vista dos meus olhos. O queixo caiu. 

   Fiquei minutos na frente daquela janela vendo o mar. Em 1965, já morando em Salvador, vivi uma temporada na pensão de Sêo Lisboa, como hóspede anual cursando o científico no Colégio João Florêncio, na Ribeira.

   No mesmo dia, fomos ao Comércio fazer as compas da tipografia e depois meu pai me levou para conhecer o Elevador Lacerda. Nossa! Nunca tinha passado tanta emoção num mesmo dia.

   De volta a Serrinha, no mesmo trem, tinha muita história para contar em casa e aos amigos.

   Nessa época,Serrinha já era cortada pela Transnordestina uma estrada que saía de Feira e seguia pelo Matão passando pelo campo de aviação e por dentro da cidade. Mas, pouca gente ia a Salvador de carro. Somente a partir dos anos 1960, com o modelo rodoviário 'andreazista' e a implantação da BR-116 Norte foi que a cidade ganhou sua primeira linha regular de ônibus. Mas, essa é outra história.
Na semana do São João estive na antiga Estação da Leste. Que tristeza! Quanta desolação e abandono! 

   Com o novo modelo implantado pelo governo federal o chamado PIL (Programa de Investimentos em Logistica) 'matou-se' a linha Aratu-Juazeiro até mesmo para cargas. Na década de 1960 já havia 'morrido' o transporte de passageiros. Agora, o novo PIL sequer fala do trem da Serrinha.

   A minha visita a Estação foi como se tivesse entrado num cemitério. Tudo 'morto'. Velhas locomotivas enferrujando-se ao tempo, a oficina lacrada com tipojos, a gare vazia, os salões de passageiros tamponados com tijolos, letreiros caidos, lustres enferrujando-se, uma tristeza.

   Só faltei levar um ramalhete de flores para colocar na sepultura da Leste. Percorri duas vezes de ponta-a-ponta com as lágrimas nos olhos lembrando-me daquele apito da primeira viagem.