FILOSOFIA: As pessoas em volta buscamos sentido

Sérgio São Bernardo
09/03/2015 às 09:35
qui, longe no vale do rio da consciência, um grande morro branco avista nossas vistas e veste-se de muralhas inatingíveis. 

Reflito sobre essas muralhas. A verdade aparece e reaparece como nuvens de neblinas brancas e ocas, com formas de coisas que lembramos ou sonhamos. Os sintomas vagam em sinapses frouxas que inundam os mistérios da alma e o rio divaga e desvanece como o fluxo de continuidade do vale. Mas, aqui, nada continua como idealizamos. 
Construímos discursos para obter respostas que não chegam. “A filosofia nos colocou de joelhos”. Por que do nada, nada viria e do tudo viria o nada? A hipocrisia reina em nossos olhos e uma falsa crença em tudo e uma forçosa fé em coisas banais. Todos os dias a verdade é vedada com um cálice e com uma concha pagã que vingam o que é e o que não é, produzindo versões e mitos que nos alimentam e sustentam a experiência mais rica e contraditória do humano: a fé. 

Acreditamos no que queremos e a vontade que nos representa como pulso de vida e de morte realiza a trajetória feliz das narrativas. Necessitamos da fé. Uma história inicial que deverá ser repetida como dramas sucessivos e teatrais. 

Ao seriarmos a vida em sucessões e “duplos”, inventamos o tempo e a comparação. Todo o humano, em sociedade, nesse tempo novo, se constitui desta alegria triste, chamada melancolia comparativa, a qual rendemos homenagens e postagens em redes sociais.

Inventamos simulacros que nos confortam estanques numa parte do corpo e os guardarmos como troféus na parede da sala e nas estantes da biblioteca. Somos continuação e variação, mas também somos essência e multiplicação. Contraditoriamente somos invenções rebeldes do modelo que se esqueceu. Um paradigma mutante, sem base narrativa, que se inicia. Fractais subversivos. Nódoa e Mágoa. Canalhice e dissimulação. Ninguém é absolutamente verdadeiro.

Com este fértil buraco negro, quem incita criações originais, penso iniciar este discurso sobre as pessoas e as relações material e imaterial que se entrelaçam na vida prática dessas mutações sociais. Os outros que nos rodeiam e suas múltiplas formas de ser e estar traduzem mundos possíveis e impossíveis. As possibilidades são visíveis e invisíveis ao gosto do freguês.

As pessoas alcançam níveis potenciais de personalidades particulares e públicas e estas personalidades são intercambiáveis ou não. Quando se intercambiam, parece ser mais lógico e previsível que suas variações se expliquem entre si, quando não se intercambiam, parece mais irracional que suas aparentes autonomias se justifiquem. Essas personalidades são mais constantes e densas em determinados estudos psicológicos e muito mais inconstantes e fluídas em determinados estudos esotéricos, como já sabemos. 

As “pessoas em volta” dispõem de variações milionárias das quais aproveitam a riqueza do momento e se debruçam em usá-las como lhes convém ou como lhes chegam. Fatalidade que não é meramente uma contingência do humano, que se alimenta da cultura possível, de sua determinada experiência histórica e nem, tampouco, de uma necessidade que se encaixa na quadra inexorável do destino previsível. Quem se oprimiu se compraz de mais modos de saber e inventar. Esta é a regra de ouro do negro que envenenava aos tantinhos os senhores aos tempos que passavam. Esta é a regra de ouro das mulheres que não sucumbem a brutalidade dos machos que morrem antes dela. 

Essas “pessoas em volta”, nesta quadra do tempo e lugar, estão negociando mais suas identidades e personalidades. E essas negociações são mais fluídas, temporais e “gelatinosas” como se colocam o mundo agora. Este não é um niilismo desmedido. É uma constatação odiosa. Odiosa, porque os estudiosos da personalidade, da vida e da sociedade estão nos exibindo e, nós estamos aprendendo este caminho de descoberta. Por isso, os estudos que abordam a personalidade produzem finanças iguais às telecomunicações. 

A ciência que hegemoniza seu conceito não se aceita; é feliz com esta possibilidade de múltiplas personalidades intercambiáveis ou não. O que chamo de intercambiável está no campo dos selfs psicológicos e suas digressões e classificações, positivas e negativas. O que chamo de não necessariamente intercambiável está no campo das crenças espirituais e esotéricas. Um está no campo da transcendência, outro da imanência. A filosofia tratou de dividi-las e não intercambiá-las. Bom, o que pretendo é intercambiá-las para tratar das “pessoas em volta”. Como as pessoas se inventam e reinventam nos desafios cotidianos, na vida prática e nas crenças espirituais. Como estas variações são facilmente justificáveis por explicações simplórias de uma psicologia de domínio popular ou de uma justificação nas representações míticas e divinatórias de determinadas religiões e filosofias pagãs, pagas e autoritárias. 

As “pessoas em volta” estão mais vacilantes e espertas. Explico. Elas não se atêm demasiadamente presas à suas personalidades individualizadas, dominantes ou solares. Podem se comprazer de diversos modos de confrontar situações fáticas. Se necessitar, enfrentam algo que falte a sua natureza dominante, não hesitam em dispor daquilo que sua natureza cambiável lhe dará como fluxo imediato, para “salvar-lhe” da situação adversa ou potencializar a situação que requer maior investidura não prevista na personalidade dominante. Esta maestria é tanto mais rápida quanto as informações on line. 

As “pessoas em volta” estão acessando mais rapidamente e de diversas maneiras outras personalidades não dominantes para resolver questões da vida material e imaterial. Elas não obedecem a nenhum rigor sistêmico e ideológico fixo. São contraditórias. São verdadeiramente contraditórias. 

Estes acessos às personalidades intercambiáveis e não necessariamente intercambiáveis são aleatórias. As combinações das personalidades podem ser harmônicas ou desarmônicas – o que a psiquiatria denomina distúrbios da personalidade – e que prefiro chamar de personalidades intercambiáveis e não necessariamente intercambiáveis, dando-lhe um caráter de naturalidade para podermos entender, sem maiores julgamentos, esses comportamentos e fenômenos. Portanto, não se trata aqui de uma doença, tal como a descreve uma ciência.

As “pessoas em volta” são mais vacilantes porque dispõem desses outros modos de manifestarem suas personalidades, de forma mais particular e velada. O que sugere, em alguns momentos, um confronto de si mesmas.
A resignação é um sentimento religioso extraído da emoção, da paciência de como a espera do tempo é melhor para resolver o que não sabemos.

As “pessoas em volta” estão mais espertas. Estão acionando seus dispositivos possíveis e impossíveis. Entendendo como impossíveis os dispositivos como substâncias naturais e artificiais, que os auxiliam a alcançar comportamentos mais raros em suas personalidades cambiáveis ou não. As “pessoas em volta” estão mais espertas, porque aprenderam nesta quadra do tempo a usar estes recursos para visitar outros mundos e sensações, posicionando-os numa quadra inversa do que praticam na vida pública ou privada. 
Tem pessoas que atuam em esferas institucionais e que não têm nenhum pudor em acessar sua personalidade religiosa e confundir estatutos distintos, trocando-os em ambientes inversos os dogmas, regras e leis de um e de outro. Outro exemplo é como dispusemos da nossa atividades privadas: não hesitamos em construir um self público na vida social e praticarmos as mais variadas experiências como personalidades privadas ou, personalizarmos privativamente nossa ansiedade pecadora ao público desejo de alcançar, com tais mecanismos, algum outro tipo de poder, também “erotizável”. 

Isso são câmbios suportáveis para as “pessoas em volta”. Estes temas deram a poucos homens e mulheres a fama de se tornarem fiéis tradutores e transdutores da alma humana. 

As “pessoas em volta” se preparam, conservadoras, para um mundo que se aproxima da miséria humana. Todos se festejam. Escondido ou escondida. Todos são odiosos e odiosas. Todos pagam o preço do pão que lhes custou. 
Tenho cá uma pequena sensação de que estou chegando perto desse milímetro que mistura dor, prazer e indiferença. Açúcar, ácido e sal. Porque o terceiro se refaz entre duplos históricos e confortáveis. Porque as pessoas em volta são muito mais do que sua própria identidade traduzida e transduzida.

As “pessoas em volta” existem, senão agora ao final dessas linhas e a partir delas.