FUNÇÃO SOCIAL DA LITERATURA NA ATUALIDADE

Leandro Alves de Araújo
04/04/2010 às 11:21

Foto: ARQUIVO
Seria possível falar em literatura brasileira sem Machado de Assis? Essa é a questão!
 

  As inúmeras inquietações que permeiam o universo do que se legitima como canônico, bem como a eleição, tradição e perpetuação do mesmo são questões antigas, inconclusas e constituintes de verdadeiros meandros nas superfícies íngremes da literatura universal ou nacional.


 Interrogar o cânone na pós-modernidade, onde o conceito de "sociedade líquida", em que "tudo que é sólido desmancha no ar", constitui-se em um paradigma refutável, pertinente e discursivo no coevo estudo em torno da literatura brasileira.

           
   Seria possível falar numa literatura inglesa, sem citar Shakespeare? Espanhola, sem Cervantes? Argentina, sem Borges e Brasil sem Machado? Tudo depende do referencial adotado.

   A palavra cânone origina-se do Grego "kanon", cujo significado é vara de medir, a palavra é sinônimo de lei, norma, um princípio de seleção e de exclusão. No "hall" canônico da literatura, estariam reunidas as obras clássicas, escritas pelos grandes mestres, preservados para futuras gerações. Mas no contexto literário, seria cabível medir a quantidade ou instituir valores para qualidades das obras? Caso a resposta seja sim, caberia ainda indagar: Quais critérios são selecionados neste processo? Estariam implícitos posturas político-ideológicas, correntes estéticas, temporalidade ou ainda preferências pessoais?

           
   O contexto da palavra "cânone" é problemático. Quando um douto ou grupo de doutos sentam para produzir uma lista das obras essenciais de uma literatura, a impressão é a de que seus autores estão sendo canonizados. Tratar livros como sagrados pode ter o nefasto efeito de reforçar o preconceito vigente na cultura contemporânea de que livros dizem remoto respeito à nossa existência cotidiana, de que são algo sempre além do nosso alcance, reservados para uma turma de "eleitos". Porém, o caráter essencial dos livros é que os mesmos podem mudar concepções de mundo, exercitar a consciência, a criticidade, um convite para navegações que permita-nos sermos menos conformistas. Menos dispostos, portanto, a canonizações. Daí a contradição de tal iniciativa.

           
   Nossa crítica literária, como sabemos, é fortemente conservadora - sobretudo aquela ligada às instituições -, desejando, na maioria das vezes, perpetuar o estabelecido, evitando o risco de considerar obras que revelem qualquer grau de informação estética nova (restando para estes casos, o sarcasmo, o silêncio ou o anátema papal).


   Interrogar o cânone, a sua eleição e os seus mecanismos de perpetuação, embora pareça-nos algo ultrapassado, uma vez que sob a forte e crescente influência do pós - estruturalismo, bem como as inúmeras contribuições dos estudos culturais na contemporaneidade, se torna retrógrado e inadmissível não dar "voz" à diferença, "aos marginalizados", "subalternos" e "divergentes". As reivindicações crescentes dos sujeitos/autores, que reinventam de múltiplas maneiras o seu cotidiano, ficcionalizando muitas vezes as suas práticas e cuidados de si, não podem ser negligenciados ou exilados a penumbra do silêncio.

           
    Destarte, percebe-se que apesar das estratégias do boicote e do silêncio, os poetas que trouxeram informações estéticas novas e que ainda hoje provocam indignação e perplexidade são os nomes fundamentais, não os já assimilados ou domesticados, e logo incapazes de contribuir para a renovação de nossa poesia. - como afirmou Sylvia Paixão - que ao falarmos de cânone literário no Brasil, evidentemente iremos perceber uma ausência de mulheres, de negros, segmentos menos favorecidos socialmente, o que nos leva a perceber que não tem como se desdobrar em estudos relacionados à escrita feminina, a literatura negra, dentre outros segmentos, erroneamente, ainda, tratados, quando muito, de forma superficial sem empreender um levantamento crítico dos problemas referentes a toda uma tradição histórica na literatura brasileira.
 
   Contudo, a urgência em discutir nos múltiplos espaços - acadêmicos, universitários, escolar, midiáticos - é um determinante do mundo pós-moderno e global, pois as culturas de massa, a periferia, estão requerendo espaços historicamente renegados. A poética popular na contemporaneidade, não se permite mais em não ser ouvida e assistida. É preciso compreender que o devir literário também se encontra para além dos muros universitários, para além dos discursos elitistas das grandes metrópoles. Como endossa a crítica feita pelo teórico Roberto Reis:


O critério para se questionar um texto literário não pode se descurar do fato de que, numa dada circunstância histórica, indivíduos dotados de poder atribuíram o estatudo de literário àquele texto (e não a outros), canonizando-o.


Portanto, a função social da literatura deve ser preservada em sua essência genuína, sem distinção de etnias, gêneros e posições de classe social na sociedade.

* Leandro Alves de Araújo - Professor de literatura e pesquisador da poética e da cultura afro-brasileira contemporânea.