SUBURBANAS VIVÊNCIAS E A HORTA DE TIO ZEZITO

ZédeJesusBarrêto
01/08/2009 às 15:08
01/08/2009 - 10:02
SUBURBANAS VIVÊNCIAS E A HORTA DE TIO ZEZITO, POR ZÉDEJESUSBARRÊTO

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Foto: Arquivo
O crescimento comeu o passado e ficaram as lembranças da horta de Tio Zezito
O trem que saía da Calçada passava por Santa Luzia - ali, antes do Lobato sob a pirambeira do Alto do Cacau - de 15 em 15 minutos, dia e noite, barulhentos, as janelinhas rápidas moldurando caras, olhos arregalados na paisagem. Combios enormes de cargas e passageiros com destino a Monte Azul, nas Minas Gerais; a Juazeiro no norte baiano ou a Aracaju, Sergipe... 


Trens de Mapele, Alagoinhas, Iaçu, Caculé, Rio Real ...  a meninada acompanhando

a passagem a contar o número de vagões arrastados pela ‘maria fumaça' resfolegante,  pela ‘nova' locomotiva a diesel ou, mais adiante, pelas máquinas elétricas,

os comboios no balanço rítmico dos dormentes, subúrbio acima, na direção dos sertões.


Conhecíamos todos. Sabíamos seus horários, destinos, atrasos...


Até alguns maquinistas reconhecíamos pelo jeito, os códigos que cada um deles usava acionando os apitos, sempre que passavam. Seu Lacerda nas máquinas a lenha; Seu Coelho, numa mais possante, a diesel. 

"Seu Coelho está indo!", "Seu Lacerda está de volta!", todos ficavam sabendo.  


Eram os anos 1950 correndo pela rua Voluntários da Pátria, fábrica dos  Fiaes acima,

na beira dos trilhos, de frente pra maré, na face interior da baía de Todos-os-Santos,

as palafitas de Alagados bem adiante, a maré alta que trazia saveiros abarrotados

vindos dos cais do recôncavo, o vento inflando as velas brancas e espalhando

a maresia no fim de tarde.


O depósito de material de construção de Manolo era abastecido assim:

O saveiro ancorava nos fundos, num atracadouro de varas ficadas no mangue

que sustentavam  a precária passarela de tábuas quase soltas, e os carregadores retiravam na mão grande, na cabeça, os barrotes, as sacas de cimento, telhas, tijolos, vasos de barro, balaios de frutas, mariscos...   numa animada labuta  à base da força

e do equilíbrio, atraindo a curiosidade da meninada a cada chegada e partida.

Os mastros apontando para o céu azul, velas arriadas e enfunadas rasgando o remanso da enseada, trazendo e levando gente, riquezas, esperanças...    


Na cansada memória, guardo, ainda nítidas, imagens da pequena, quente e suja barbearia com garrafas de gasosa cheias d'água sobre prateleiras, folhinhas encardidas

e fotos de moças bonitas com pernas de fora pregadas na parede, onde todos,

crianças e adultos costumavam aparar os cabelos... Eu sempre injuriado com os beliscos da tesoura mal manipulada e com os pinicados dos restos de fios grudados no pescoço suado, coçando. Mamãe nunca aprovava o corte e  eu sempre tomava uns esporros,

às vezes uns tapas pelo cabelo mal-cortado ... 


‘Que horror, você estava leso que deixou lhe fazerem isso?' .


A tal barbearia infame, nem nome tinha, era junto da farmácia de Seu Dias, o serviçal farmacêutico que aplicava injeções e sempre tinha uma pílula, xarope, mercúrio, emplastro ou um vermífugo para acudir a todos na hora da precisão.


No mesmo correr de rua ficava a sortida venda de Seu Vavá, onde se achava

de um tudo, e mais adiante a padaria do galego Seu Sanches que vendia um pão em vara ou cacetinho que exalava quentinho a pedir manteiga, chamando a  freguesia fiel de toda tardinha.


E não esqueço o terror da rua, o feroz cachorro Duque, na casa de Seu Laerte, bicho que não suportava criança e deixou uma cicatriz para sempre, com seus dentes afiados,

na perna de meu irmão mais velho que era meio insubordinado ...


Moradas decentes de pobre distribuídas por becos e avenidas de casinhas grudadas,

poços comunitários e baldes d'água pra-lá-e-pra-cá, mangueiras e jaqueiras fartas,

alto-falantes nos postes - em Santa Luzia, era o serviço de alto-falantes Primeiro de Janeiro e no Cacau, o Tupã  -,  roupas estendidas em varais, quitandas de temperos,

abafa-bancas de frutas vendidas em casas com geladeira recém-comprada,

janelas abertas à brisa, portas arreganhadas aos vizinhos, a criançada misturada

no espaço de terra batida a jogar bola, gude e furapés, riscando, marcando o chão, melando de barro mãos e roupas, caras de ousadia e felicidade inocentes...


Dentro de casa, vassouras, máquinas Singer, brinquedos, penicos, gaiolas com pássaro cantador penduradas, cristaleira, penteadeiras cheias de bisquís e, deleite maior,

o potente rádio de seis faixas, com antena e válvulas, o som indo e vindo

ao sabor das ondas, onde a mãe e vizinhança acompanhavam em lágrimas a novela cubana ‘O Direito de Nascer', ouvia-se Ângela Maria, Nélson Gonçalves,

Luis Gonzaga, boleros e o programa da tarde ‘Só para Mulheres', do radialista Pacheco Filho, que dedicava ‘presentes sonoros' aos ouvintes.  


Entretia-me viajando nas ondas sonoras, acompanhando as peripécies do Moleque Saci em ‘Jerônimo, o Herói do Sertão', um seriado transmitido na boca da noite pela rádio Nacional do Rio, e a narração dos jogos do Fluminense de Telê, Valdo e São Castilho,

o maior de todos os goleiros brasileiros, conforme Nelson Rodrigues ... 


Foi assim que apaixonei-me também pelas façanhas do Bahia, o grande tricolor baiano

de Carlito (o maior artilheiro da história do time), Izaltino, Marito, Naninho, Lierte, Oswaldo Baliza, Juvenal Amarijo...  


A narração radiofônica de Haroldo Pessoa, José Athayde e os comentários de Souza Durão instigando a imaginação... perdida a fantasiar os ídolos.  

  

Mas o verdadeiro paraíso da infância não estava em casa.

Ficava bem perto; Era a horta de tio Zezito, o irmão de mamãe.


A ‘horta de Zezito', assim conhecida, foi cuidada, até o último pé de coentro plantado, por um caboclo sergipano forte, fiel e generoso chamado Zé Grosso, às vezes mais que um pai, e ficava a uns 100 metros da linha do trem.

Chegava-se lá por uma vereda de chão úmido e plantas, transversal à linha dos trilhos,

caminhando e passando por casas com moringas e papagaios nas janelas, quintais

com flores, árvores frutíferas, galinhas, conquéns, patos, gatos, cachorros ...  

e muitos olhos dos mais velhos, todos conhecidos, vigiando os passos.

Seu Codó e Dona Josefa ‘ passavam os olhos' em todos que por ali transitavam.


Nessa caminhada de quase todo dia, com ou sem motivo para ir, às vezes esquecíamos do tempo olhando saguis, mexendo em minhocas, catando tanajuras, apreciando o voo dos pássaros de todo tamanho e cantoria, molhando pés e mãos em córregos com piabas e caramujos...


E tinha pelo caminho um jenipapeiro imenso, um corredor de bananeiras, até avistar, enfim, a cerca de estacas, mato e arame, e chegar ao portão de madeira que dava entrada à horta...


Horta que era toda repartida em canteiros de alface, couves, coentro, cebolinha

em fileiras, plantação de quiabos, jilós, tomates, pimentões...

E flores, muitas flores: rosas, gérberas, cravos, angélicas, crisântemos, margaridas, hortênsias... 


Já no cair de tarde, noite a dentro (ainda ouço distante, saudoso, lá bem no fundo do baú das oiças) a indescritível sinfonia de gias e sapos, às centenas, na morada do brejo, ali pertinho da casa, nas valas de agrião, coaxando pra lua.


A horta de tio Zezito  tinha cores, pios, cheiros, silêncios de encher olhos, ouvidos, coração, pulmões... tinha traços, formas e motivos de sobra para atiçar a imaginação e nos levar, crianças, a um mundo encantado onde me refugiava, sonso e feliz, do rigor da realidade...


Entrava na casinha com parede de taipa onde ficavam os tabuleiros, os balaios,

uma mesinha tosca, tamboretes, a gaveta do troco e a janela por onde, geralmente,

Zé Grosso atendia a freguesia com aquela cara larga, bigode farto, de bem com a vida,  aquele sotaque de ‘pai véi' sertanejo, pitando seu cigarro de ‘paia', os braços roliços

de muque forjado no trabalho da enxada, no carrego de cestos e balaios cheios

na cabeça, ou sustentando o peso dos regadores enormes com que chuveirava diariamente, no sol brando, os canteiros enfileirados daquela horta imensa

de minha infância...


E eu, compenetrado, caminhava entre os canteiros, os pés descalços chapinhando poças pelos regos, trilhando corredores infindos de plantas, labirintos onde me perdia quase sempre... pisando com cuidado para não tropeçar nos delírios, evitando o risco de estragar as leiras tão bem cuidadas.  


Nos fundos da horta, já sob a escarpa da ladeira do São Caetano, ficava a cocheira

do pai de Tonho, Seu João da Cocheira, um portuga trabalhador de fala embolada, chapéu de palha e bermudões de pano de saco. Lá criavam-se cavalos e me atraíam

o jeito de vida deles, o cheiro de estrume do curral, o leite morno sadio das vacas bem criadas, os bezerrinhos assustados nos olhando.


Tio Zezito era miúdo, amável, doentio, organizado e gostava de pássaros.

Criava papagaios, sofrês, rolinhas, cardeais, coleiras ou viuvinhas, pintassilgos,

papa-capins, sanhaços, curiós, canários ...  


Ao redor da casa de tia Guiomar, uma segunda mãe, era uma cantoria só, as paredes enfeitadas por dezenas de gaiolas de todos os tamanhos.


Apreciava, encantado, titio trocando prosas com os papagaios, ensinando os sofrês

a assoviar o hino nacional, a fazer ‘fiu-fiu' pras moças que entravam na horta, arrulhando para as rolinhas, emitindo o assovio exato que imitava trinados do pássaro de cada gaiola... conversando baixinho, comunicando-se com um-por-um dos bichinhos que saracoteavam felizes com a troca do alpiste e da água nos cacos, com a limpeza

do ‘adubo' no piso de cada gaiola e, mais que isso, com o carinho humano dispensado.  


Algumas das gaiolas tinham as porteirinhas abertas pela manhã, para que as aves passeassem, se distraíssem soltas pela horta ao lado dos colibrís, bem-te-vis, sabiás, lavadeiras, borboletas, lava-bundas ... esses libertos por natureza.

À tardinha, tio Zezito assoviava e eles voltavam para dormir em suas casinhas/gaiolas.  


Assim me lembro.


Meu irmão mais velho recorda que tio Zezito era inquieto e tinha tiradas engraçadas.

Lembra que, certa feita, caminhando em direção da horta, ao passar pelas bananeiras, deparou-se com um ‘pacotaço' fétido e amolecido que alguém, desarranjado das tripas, arriou à noite na moita, aliviando-se.


- Cocô, tio!  Disse o mano, esperto e bom de língua desde guri.


O tio respondeu, didático:


- Não é cocô, filho. Isso é merda ! Merda é mole, bosta é dura, faz tolete... e cocô é de menino novo!


  Assim, na família, aprendemos a nomear precisamente, pela consistência e sem sujeira, os variados ‘pacotes' fecais humanos. 


Do mesmo baú de sabedorias: Pum é de criança, peido é sonoro, bufa é discreta. 


E assim por diante, tio Zezito ensinava, rindo; Um poço de bom humor.  

   

Como guardo na alma, para sempre agradecido, a proteção da tia Guiomar,

o refúgio de seu carinho, procurando sempre um jeito de agradar, junto dos primos

mais novos, Jorge e Maria, inventando comidinhas cheirosas para enganar o meu fastio.


A casa da tia tinha o aconchego de avó. Cachorrinho vira-lata caseiro, gatos manhando, colo, dengo... o fascínio de uma bola de borracha quicando ...


*


Essas lembranças tolas e distantes me vieram ao passar pela avenida Suburbana,

agora só asfalto e gasolina, nenhum vagão de trem nos trilhos, a maré entulhada,

águas  aterradas, áreas invadidas, nenhum verde, o casario pobre de tijolo aparente tomando tudo, vielas apertadas, lajes batidas, janelas e portas  protegidas com grades

de ferro, gente espremendo-se pelos becos, famílias entocadas, um clima de violência

e medo em cada esquina...


Alcool, fumo, pó e pedras fartos nas mesas dos botecos, a juventude insana, perdida...


Mais dinheiro circulando e a mesma pobreza ao lado, piorada, pois assustada...

a despeito dos fios, antenas, celulares, internetes e a pogodeira aos berros nos fundos dos carros abertos.


Companheiro de uma vida, o leal amigo Zé Grosso ainda traga um paco entre uma tosse e outra, joga dominó, conta histórias e ri, o fôlego curto mas a memória acesa.

Já passado dos 70 ... nós lhe tomamos a benção, Zé, pai véi!

Agradecidos.


Tia Guiomar querida guarda a cabeça alvinha.


As pernas fraquejam mas o riso é o mesmo. Nem sei como aquela mente tão simples

e sempre voltada para o bem tem processado tanta baboseira em volta...

vivendo agora assim espremida, acuada, com medo ...a menos de 100 metros da iluminada e agitada avenida Suburbana, onde os carros voam, atropelam e matam; os ônibus rodam cheios  e a molecada não tem mais um pedaço de chão para bater o baba.


Hoje, por aquelas bandas, as gangues circulam livres, sol e lua, dão ordens,

espalham terror,  liberam o tráfico e promovem tiroteios na rua, deixando cadáveres

dos concorrentes ou inadimplentes nas calçadas, às portas das casas,

a cada fim de semana.


A tia Guiomar, agora, só resta mesmo a fé em Deus, a proteção da Virgem Maria...

para que possa viver o que lhe resta com dignidade, até o chegar da hora de cada um, como está escrito.


Ah, dias tão estranhos...


Uma suburbana vida sem mais hortas, cocheiras, quitandas, saveiros, bola, gaiolas, árvores, flores, regatos limpos, sofrês cantando...

Sem tranqüilidade, sem paz...Nada!  


O ‘crescimento' comeu o passado.

A tal ‘modernidade' vai, aos poucos, deletando imagens, borrando lembranças...


Escrevo, somente.

Esse tal futuro, parece, a mim não mais pertence.