UMA LINDA HISTÓRIA DE AMOR NOS ANOS DE CHUMBO

Antonio Jorge Moura
27/07/2009 às 07:02
Foto: Malu Brasil
A narração é do jornalista Antonio Jorge Moura
 O Brasil estava no auge da ditadura militar instalada em março de 1964. O tio da namorada parou o carro na orla do centro urbano de Ilhéus, na época local ermo, perto do Porto do Malhado, e mandou Jorge descer. Ficaram frente a frente no passeio do lado do mar, na Avenida Soares Lopes.

O tio falou em tom ameaçador: - Você é subversivo, nós estamos sabendo da prisão de sua irmã. A mãe de sua namorada já esteve na Polícia Federal para lhe denunciar e nós resolvemos te dar uma chance: saia daqui, suma, desapareça, não misture a menina com isso e não a procure mais, senão vamos denunciá-lo de vez à PF. Ouça bem e caia fora!

Jorge tremeu dos pés à cabeça, ficou sem fala. A irmã, jornalista, tinha sido presa pelo regime militar quando deixou a redação da Barroquinha para fazer reportagem. Subiu a Ladeira da Praça até a Praça Municipal, desceu o Elevador Lacerda e estava na parte baixa do Elevador, na Praça Cayru, em frente ao Mercado Modelo, quando foi segurada por homens armados, desconhecidos e empurrada dentro de um carro.

O fotógrafo Teófilo, que a acompanhara na tarefa profissional, só teve tempo de ouvir a advertência: "caia fora, é do Exército". Ela morava com o marido, ex-dirigente da UNE, perto da praia da Boa Viagem, na Cidade Baixa. Ele foi preso naquela mesma manhã após sair de casa, próxima da fábrica da companhia de cigarros Souza Cruz.

Quatro dias depois uma nota oficial emitida pelo IV Exército anunciou que ele havia morrido a tiros que teriam sido disparados por um hipotético subversivo, colega de organização clandestina, com o qual, supostamente, os órgãos de repressão teriam acompanhado um encontro, um "ponto", como se dizia em linguagem de resistência ao regime.

Mas outros presos que o haviam visto dois dias após a prisão, no Quartel do Barbalho, em Salvador, afirmaram que o tinham visto trôpego, profundamente debilitado pelas torturas, praticamente se arrastando. Depois de ser intimidado pelo tio da namorada, travaram o seguinte diálogo: - Tem alguma coisa na casa dos pais dela, trouxe mala? - perguntou o tio. - Não, eu não trouxe nada, vim só com a roupa do corpo - respondeu
Jorge. - Então, vou lhe deixar na rodoviária, compre sua passagem e volte para Salvador - ordenou o ameaçador tio.

Em 31 de março de 1974, Jorge estava em cima do palanque erguido pelas Forças Armadas na Avenida Soares Lopes, trabalhando pelo jornal, fazendo cobertura das comemorações do Aniversário da Revolução, acompanhando o desfile de tropas que encerrava mais uma Operação Interna do regime militar.

De lá ele avistou uma irmã da ex-namorada, que se aproximou do palanque e disse para ele: -Ela quer lhe ver às sete horas da noite no Malhado. Jorge ouviu surpreso e respondeu: - Diga que vou estar lá. Ele depois se encontrou com os demais colegas jornalistas, Pastore da Bahia e dois outros de Pernambuco, sede do quartel do IV Exército, contou o convite e pediu que o acompanhassem até o Malhado, mas ficassem à distância.

Foi por uma "questão de segurança", porque temia que viesse a ser agredido por algum integrante da família da ex-namorada. De noite se encontraram, os três colegas jornalistas ficaram à distância observando. Os enamorados se encontraram e em 15 minutos aconteceu o que não havia acontecido em um ano de namoro.
 
Naqueles anos 70 ainda se preservava a virgindade da mulher e relação sexual só acontecia, na maioria das vezes, depois de noivado e casamento. Passados 20 anos, em 1995 Jorge estava na redação do jornal quando lhe avisaram que tinha telefonema. - Alô. - Alô, sou eu. - Diga aí menina, como está? Tem tempos que não te vejo. - Jorge, preciso lhe falar. É coisa urgente - Diga! - Mas eu quero falar pessoalmente. - Adiante logo, não me deixe na expectativa. - Pois é. Você conhece minha filha mais velha? - Não, nunca a vi. - Pois minha filha não é filha de meu marido. É sua filha.

Combinaram se encontrar naquela mesma noite. A ex-namorada já havia organizado tudo. Tomara emprestado o flat de uma amiga e confidente, localizado na Orla de Salvador, em Armação, perto da Boca do Rio.

Foi um encontro emocionado, anos depois de terem sido separados pelo medo que a ditadura militar do Brasil infundia na família dela, de pequenos lavradores de cacau do sul da Bahia e adeptos do rádio-amadorismo. Ela contou a Jorge que naquele encontro na noite de 31 de março, na área do Malhado, em Ilhéus, já tinha novo namorado.
 
O tal namorado era rádio-amador e funcionário público, ligado à família pelo rádio-amadorismo, que ele desconfiava ter sido incentivador da denúncia da mãe da ex-namorada à Polícia Federal, e pelo tom ameaçador do tio dela com o intuito exclusivo de separá-los. Ela contou que um mês depois do encontro na área do Porto do Malhado a menstruação não apareceu e esse poderia ser sinal de que estava grávida.

Anderson., amigo de Jorge nos estudos preparatórios para o vestibular a UFBA, estudante de Medicina e primo dela, providenciou exames e confirmou que a mesma estava grávida. Ela contou ainda que havia tentado fugir da família quando Jorge fora forçado a separar-se dela. Acabou retirada pelo pai de dentro de um ônibus da linha Ilhéus-Salvador, na estrada entre Ilhéus e Itabuna.

Por isso decidiu mudar de tática: resolveu ficar "grávida" do namorado rádio-amador e levar a família a apresar o casamento entre os dois. Até para proteger a criança e impedir que a obrigassem a fazer aborto. Assim fez até que se completaram os nove meses de gravidez. Aí entrou novamente em ação o primo Anderson, que sabia de tudo e acompanhava o pré-natal dela.
 
Com nove meses de gestação, os dois saíram de carro pelo centro urbano de Ilhéus e forjaram um acidente com o carro. O primo deu "socorro", levando-a até uma maternidade, onde ela entrou em trabalho de parto para ter uma criança "prematura" devido ao "susto" com o "acidente de carro". A ex-namorada contou ainda a Jorge que depois do parto e até que a criança, do sexo feminino, completasse três anos de idade, chorava constantemente.

Eram saudades do pai verdadeiro da criança, da situação que criou um quadro emocional descontrolado e da circunstância incomum que estava vivendo. O marido, que havia conhecia relação que ela tivera com Jorge na época de namoro, antes da prisão da irmã dele, desconfiava e dizia que "aquele chorôrô" era por causa do namorado de juventude.
 
De tanto ouvir essa versão para o descontrole ela desabafou: a menina era mesmo filha de Jorge e não dele, o marido. Depois de muito discutirem, ele propôs um acordo: assumiria a criação da criança, que já havia registrado em cartório de nascimento como se fora o pai, e manteria a situação desde que nem Jorge nem a filha soubessem da verdade. Depois disso a vida seguiu seu rumo normal.
 
O casal teve mais duas filhas, mas a criança mais velha foi crescendo e evidenciou traços da personalidade do pai: inquieta, questionadora e inconformada com a situação social do pais. Fez vestibular e ingressou na Faculdade de Direito da Ucsal. Entre seus interesses se inclinou pela metafísica e acabou consultando uma especialista em leitura de cartas. Em uma sessão de quiromancia, Carmen, a cartomante, depois de espalhar as cartas de baralho, lhe perguntou: - Cadê seu pai? - Está em casa - respondeu ela. - Como está em casa, se as cartas dizem que seu pai está ausente. A filha não ligou e achou que era "piração" de Carmen.

Tempos depois voltou a se interessar numa consulta com Carmem, que lhe fez a mesma pergunta: - Cadê seu pai? Ela saiu confusa da sessão e procurou a mãe. Ambas acabaram no divã de um psiquiatra. Depois de algumas sessões, o médico não titubeou: - Você tem que revelar a história de sua filha. É um direito natural dela saber quem é o pai. Ela saiu da sala resoluta e foi anunciar ao marido: - O médico disse que eu não posso mais esconder quem é o pai de minha filha.

Vou contar para ela e para ele. - Veja o que você vai fazer. Nós temos mais duas filhas e você precisa proteger elas e contar essa história com calma para não arranjar mais encrenca. - Vou procurar Jorge e dizer o que tenho de dizer a ele. Você não pode mais me impedir. - Como é que você vai fazer? - Vou procurar ele, que é conhecido, é jornalista e dizer que minha filha é filha dele. - E como você vai contar para ela? - Mãe e filho se entendem. - Só não vá me arranjar mais confusão. Não quero esse Jorge aqui metido no meio de minha família. Antes de conversar com Jorge, a ex´namorada foi conversar com a filha. - E, então, minha mãe, já sabe o que vai me contar/ - Sei, minha filha, você já desconfia do que vou lhe dizer. - É Jorge, né? A senhora só vive falando dele e do tempo de namoraro, suas aventuras com ele. - É minha filha, um tempo muito bom em minha vida. - E, então? - É ele mesmo que é seu pai. Eu estava noiva, quando soube que ele estava em Ilhéus.

Sua avó ficou em cima, me dando marcação, mas eu fui vê-lo na Avenida Soares Lopes. Depois nos encontramos no Malhado. Foi maravilhoso! - E depois que você apareceu grávida. - Eu fiquei com medo de que sua avó e seu avô me obrigassem a abortar, porque eu estava noiva. Aí me entreguei a meu marido, fiz de conta que estava grávida dele e pedi ajuda a seu tio, que sabia de meu amor por Jorge. - Eu sabia. A senhora não parava de falar em Jorge e do tempo em que vocês namoraram. Só falava de coisas maravilhosas.

A mãe avisou a Jorge: - Amanhã quero lhe apresentar sua filha. - Onde é que você quer me encontrar? - Você conhece o restaurante do Parque de Pituaçu? - Nunca fui lá, mas procuro. - Me encontre lá às 12:30hs. - Pode contar comigo. No horário marcado, Jorge entrou no restaurante, situado na Orla de Salvador, e correu o olhar pelo salão de atendimento. Não as avistou. Resolveu sentar e aguardar.

Pediu um uisque ao garçon. Para relaxar. O garçon chegou com o pedido, ele mexeu no líquido com o dedo e solveu um gole. Mal havia engolido o primeiro gole quando avistou a ex-namorada se aproximando, na companhia de uma jovem morena, magrinha, de corpo bem feito. - Diga aí, Jorge. Essa é a sua filha. Jorge olhou para a moça e algo mágico aconteceu: não teve dúvidas, era mesmo sua filha, não precisava de exame de DNA. Estava na cara. Era mais uma órfã paterna da ditadura.
 
Depois de um longo e silencioso abraço, se olharam com carinho, novamente se abraçaram e sentaram-se na mesa. Lado a lado. De mãos entrelaçadas. Ali começou uma linda história de amor.